"Existe um tipo de experiência vital - experiência
de tempo e espaço, de si mesmo, dos outros, das possibilidades
e perigos da vida - que é compartilhada por homens e
mulheres em todo o mundo, hoje. Designarei esse conjunto de
experiências como 'modernidade'. Ser moderno é
encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria,
crescimento, autotransformação e transformação
das coisas em redor - mas ao mesmo tempo ameaça destruir
tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. A experiência
ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas
e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia:
nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie
humana. Porém é uma unidade paradoxal: ela nos
despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração
e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade
e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo
no qual ... 'tudo o que é sólido desmancha no
ar'".
Esse fragmento, escrito por Marshall Berman , ao referir-se
à experiência da modernidade, aponta mudanças
cujos fragmentos todos nós, de algum modo, percebemos:
o terreno movediço que nos serve de chão parece
levar-nos a um destino incerto, feito de mudanças cada
vez mais rápidas, no que diz respeito tanto às
conquistas da tecnologia quanto ao universo das relações
sociais; à configuração do mundo do trabalho,
da família e de outras instituições;
à utilização do tempo e até mesmo
ao modo de se conceberem projetos de vida, hoje muito mais
sujeitos à flutuação das circunstâncias.
Impossível, nesse quadro, deixar de pensar na escola:
Que papel deve ela cumprir na formação do jovem?
Como prepará-lo para os desafios dos novos tempos?
Como prepará-lo para a vida, se o futuro, como diz
Morin, chama-se "incerteza"?
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB), de 1996, e as Diretrizes Curriculares Nacionais para
o Ensino Médio (DCNEM), aprovadas em 1998, são
uma resposta possível, neste momento, a essas questões.
A LDB inova ao colocar o Ensino Médio como parte da
educação básica, afirmando a necessidade
de universalização desse nível de ensino.
Inova também ao separar o ensino profissionalizante:
ao assegurar terminalidade, o Ensino Médio deve oferecer
formação geral, ficando a profissionalização
para cursos concomitantes ou posteriores ao Ensino Médio.
E inova, por fim, ao propor flexibilidade na organização
curricular, nas formas de pensar o tempo na escola e a trajetória
escolar do aluno.
Ao sistematizar princípios e orientações
da LDB, ao explicitar os desdobramentos dessas diretrizes
no plano pedagógico, ao dispor sobre a organização
curricular, as DCNEM, destacam conceitos cuja discussão
nos parece ser da maior importância para que mudanças
efetivas possam acontecer.
O que destacam as DCNEM?
Identidade e projeto escolar
O Ensino Médio tem sido um sobrevivente: sem recursos
próprios, vem existindo das sobras do Ensino Fundamental,
não recebendo a devida atenção tanto
no que diz respeito às necessidades de investimento
quanto no que se refereà reflexão sobre seu
papel na formação do estudante. As exigências
da modernidade, porém, fazem crescer a procura por
esse nível de ensino e nos obrigam a repensá-lo.
É preciso definir que Ensino Médio queremos,
dar-lhe identidade.
A LDB de 1996 define a identidade do Ensino Médio
com relação ao seu papel na formação
do aluno: parte final da educação básica,
o Ensino Médio deixa de ser um curso de "passagem"
para o Ensino Superior ou para uma qualificação
profissional específica que assegure formação
geral ao estudante.
A identidade também se define no universo das unidades
escolares. Constrói-se na elaboração
do projeto escolar. O projeto escolar expressa o pensamento,
a cultura da comunidade escolar, composta por pais, alunos,
professores, professor(es) coordenador(es), diretor. Essa
participação legitima o projeto na medida em
que torna toda a comunidade responsável pela sustentação
do que ele propõe.
Ao ser formalizado, esse projeto define os rumos e objetivos
do trabalho a ser desenvolvido: o que ensinar; para que ensinar;
como ensinar; quais os materiais mais adequados e mais estimulantes
para que o aluno se motive e aprenda; como avaliar, entendendo-se
avaliação como bússola que reorienta
o trabalho da equipe escolar. O projeto também delineia
como a escola, em seu conjunto, irá se organizar para
desenvolvê-lo: os modos de gestão do tempo e
da vida escolar; a participação da APM, do Conselho
de Escola e do Grêmio Estudantil; o plano de investimento
dos recursos financeiros recebidos.
Ao elaborar seu projeto, a escola expressa necessidades,
desejos e objetivos que definem, afinal, sua identidade. Uma
reavaliação periódica desse projeto permite
um atendimento mais afinado com o perfil da clientela da escola,
amplia a eficácia do trabalho e contribui para o crescimento
de quem trabalha nele.
Competência e aprendizagem no centro do processo educativo
A Reunião Internacional sobre Educação
para o Século XXI, organizada pela UNESCO, aponta quatro
necessidades básicas de aprendizagem para o cidadão
deste novo milênio: aprender a conhecer, aprender a
fazer, aprender a conviver, aprender a ser. Ao adotá-las
como eixos organizadores do currículo, as DCNEM introduzem,
ao mesmo tempo, duas mudanças.
Em primeiro lugar, colocam a aprendizagem (e não o
ensino) no centro do processo educativo. Essa colocação
reforça a responsabilidade dos professores sobre o
sucesso da aprendizagem do aluno: não basta ensinar;
é preciso comprometer-se com o efetivo aprendizado
do aluno. Em segundo lugar, colocam os conteúdos como
meios de se desenvolverem competências que garantam
aos alunos condições de exercerem plenamente
seu potencial no mundo do trabalho e seu papel como cidadãos.
A complexidade do mundo atual exige mais que o domínio
de conteúdos: é preciso saber operacionalizá-los,
relacioná-los, mobilizá-los em situações
concretas de qualquer natureza. A construção
das competências básicas - aprender a ser, a
fazer, a conviver, a conhecer - se dá em cada área
e disciplina, segundo as especificidades de cada uma.
Interdisciplinaridade
A construção de competências passa,
necessariamente, pelo desenvolvimento de conteúdos.
Mas é necessário dar sentido a esses conteúdos,
tratar o conhecimento do modo como ele de fato se faz: da
conjunção de vários saberes que se comunicam
e produzem novos saberes. É preciso tratá-lo
de uma forma orgânica, promovendo o diálogo entre
o que se vem desenvolvendo fragmentadamente na escola, tornando
a interdisciplinaridade uma prática pedagógica
que se realize em projetos de estudo, pesquisas e atividades
que, mesmo mantida a integridade disciplinar do currículo,
ponham em contato os saberes em favor de uma compreensão
de mundo mais integrada, mais próxima do modo como
a realidade de fato se apresenta.
"Há inadequação cada vez mais ampla,
profunda e grave entre os saberes separados, fragmentados,
compartimentados entre disciplinas, e, por outro lado, realidades
ou problemas cada vez mais polidisciplinares, transversais,
multidimensionais, transnacionais, globais, planetários"
. Compreender, analisar, imaginar interferências para
os problemas ambientais, para ficarmos em um exemplo simples,
exige a mobilização de conhecimentos tradicionalmente
desenvolvidos em diferentes disciplinas. Só um tratamento
interdisciplinar permite conjugá-los e dirigi-los para
o estudo e/ou a resolução de problemas complexos
como, por exemplo, os ambientais.
Contextualização
A construção de competências e o desenvolvimento
mais integrado, interdisciplinar, dos conteúdos passam
necessariamente pela contextualização, ou seja,
pela relação entre os conteúdos e as
situações nas quais eles se produziram ou se
aplicam.
A vida cotidiana é profícua em situações
que podem contextualizar conteúdos das diferentes áreas.
O jornal, por exemplo, constitui-se num grande contexto que
oferece inúmeras possibilidades de se desenvolver um
trabalho interdisciplinar. A simples leitura de um artigo
pode iluminar de sentido conteúdos de mais de uma área:
além do uso da língua, cabe discutir público,
intenções de um texto, imaginar mais de uma
estratégia de leitura, conjugá-la com a leitura
de textos não-verbais. Cabe também, obviamente,
uma leitura do conteúdo do artigo, que pode manter
conexão com várias e diferentes disciplinas.
Talvez caiba uma leitura histórica do texto, investigando
variáveis que tenham participado da produção
do fato em si e a versão dada pelo artigo. Os processos
de produção, os quais permitiram que aquele
artigo tenha chegado a seu leitor, são complexos: envolvem
cálculo em mais de um momento, demandam tecnologia,
aliando-a o tempo todo ao que o trabalho tem de mais humano
- decisões, riscos, possibilidades de erro.
Este é apenas um exemplo. Mas é suficiente
para mostrar como a contextualização pode garantir
sentido a esse conteúdo, propiciando não só
a construção de competências, mas também
a legitimação da escola como espaço de
convivência, aprendizado, acesso, construção
e partilha do conhecimento.
O exemplo também esclarece sobre a articulação
natural entre contextualização e interdisciplinaridade:
o contexto, sendo mais amplo que o objeto imediato de estudo,
lança-se em direções que a escola trata
em disciplinas diferentes. Só o diálogo entre
essas disciplinas, portanto, pode de fato compor o contexto
em seu conjunto. Em outras palavras, a interdisciplinaridade
se dá pela contextualização.
De acordo com as DCNEM, o contexto explícito é
o mundo do trabalho - aqui entendido em seu sentido geral,
e não prático - e o exercício da cidadania.
Flexibilidade no ensino e autonomia
A construção de um projeto pedagógico
e a realização de um trabalho interdisciplinar
e contextualizado são espaços de exercício
de flexibilidade e autonomia.
O projeto pedagógico deve pensar, dentro do currículo
proposto, na criação de condições
que assegurem uma "aprendizagem motivadora e significativa",
cercada de elementos que digam respeito à vida dos
alunos e da comunidade em que vivem. É essa perspectiva
que ampara a decisão sobre o recorte dos conteúdos
de cada disciplina, as estratégias para abordá-los
e os materiais a serem utilizados para desenvolvê-los.
Essas definições exercitam a autonomia do professor
e da equipe escolar: ao decidir sobre diferentes aspectos
do processo de aprendizagem, esses agentes tornam-se responsáveis
pela aprendizagem do aluno, pelos resultados do processo.
A ênfase dada às áreas na proposta de
organização do currículo ressalta a articulação
interdisciplinar, mas pressupõe a permanência
das disciplinas: " A construção do conhecimento
... é claramente disciplinar e dificilmente se poderia
conceber um aprendizado que não o fosse (...) A interdisciplinaridade
é também construída no aprendizado ou
no seu exame, não pela fusão de disciplinas,
mas pela realidade das questões tratadas, por sua contextualização"
.
A flexibilidade também marca as possibilidades de
organização do curso. Além da organização
anual que distribui a carga horária de todas as disciplinas
ao longo do ano letivo, o Ensino Médio pode, ainda
que anual, ser estruturado semestralmente, concentrando em
cada um dos semestres a carga horária total de disciplinas
da série. Há ainda a possibilidade de se estruturar
o curso em períodos semestrais ou módulos.
É flexível a organização dos
cursos de Língua Estrangeira Moderna, Educação
Física e Educação Artística, que
podem ser dados em classes não seriadas, com base na
idade e no nível de conhecimento dos alunos.
As alternativas ao trajeto escolar do aluno mostram novamente
a flexibilidade da lei: a escola tem autonomia para, a partir
de uma avaliação de competências, determinar
a série em que um aluno será matriculado, mesmo
que ele não tenha cursado todas as séries anteriores,
desde que respeitada a correlação idade-série;
a escola pode também reclassificá-lo em séries
posteriores, de modo a promover o avanço ou a aceleração
dos estudos. A progressão parcial permite que, se retido
em até três disciplinas, o aluno passe à
série seguinte e curse, ao mesmo tempo, as disciplinas
em que teve desempenho insatisfatório.
A flexibilidade fortalece a autonomia da escola, transferindo-lhe
a responsabilidade pela organização dos tempos
e espaços escolares, por alternativas ao trajeto do
aluno, de modo que possa atender de modo mais eficaz e adequado
a sua clientela.
Preparar para o mundo do trabalho não é o mesmo
que preparar para um posto de trabalho
O Ensino Médio dissociou-se do ensino profissionalizante,
realizado agora ao mesmo tempo ou depois desse nível
de ensino. Assim, o Ensino Médio não é
mais profissionalizante, não prepara para o exercício
desta ou daquela profissão específica, mas está
atrelado à formação geral do aluno.
Mas o mundo do trabalho é contexto privilegiado, ao
qual deve voltar-se o olhar de quem trabalha com jovens em
vias de completar sua formação básica
e cujo interesse pelo mercado de trabalho é de curto
ou médio prazo, se não imediato. Ao aluno deve
ser garantida formação geral pensando-se no
trabalho como uma das principais atividades humanas, como
espaço de exercício de cidadania, como espaço
de produção de bens e serviços e essencial
na compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos
dos processos produtivos. Assim, o mundo do trabalho se apresenta
como contexto extremamente oportuno e rico para dar sentido
aos conhecimentos desenvolvidos na escola.
É importante estimular o protagonismo juvenil
O jovem hoje tem expectativas bastante sensatas em relação
à escola: quer que ela seja limpa, agradável,
bem equipada, um lugar onde possa de fato aprender. Espera
sentir-se parte dela e poder dela se orgulhar. Para isso,
quer que ela tenha uma "cara própria" e que
lhe ofereça canais de participação, além
da oportunidade de se envolver em questões que digam
respeito a ele mesmo e a sua comunidade, como as relacionadas
a saúde
( sexualidade, drogas), meio ambiente e qualidade de vida.
Para grande parcela dos jovens, a escola tem sido um espaço
de desalento e de desesperança. Com efeito, na escola
que aí está, os verdadeiros e únicos
protagonistas têm sido os adultos. Essa situação
necessita ser invertida urgentemente, ou melhor, precisa encontrar
um novo ponto de equilíbrio. Sem isso, não é
possível fazer do jovem co-autor do processo de ensino
e aprendizagem, elemento capaz de exercer e aprofundar sua
autonomia e cidadania.
Como espaço de aprender a ser e de aprender a conviver,
a escola é também um espaço onde o jovem
pode e deve exercitar o protagonismo, atuando efetivamente
na escola, apresentado propostas, promovendo discussões
que digam respeito à vida escolar ou ao interesse da
comunidade; ou participando de organizações
como, por exemplo, o grêmio ou outros grupos em interesses
específicos; seja participando de grupos que a própria
escola propõe como aglutinadores de interesse: teatro,
dança, banda ou jornal são atividades que, dentre
outras, podem reunir interesses e contribuir para a construção
ou o fortalecimento da identidade da escola.
As mudanças de dentro e as outras mudanças
Afinal, por que se fala tanto do novo Ensino Médio?
Teria ele mudado tão radicalmente, a ponto de ser chamado
de novo?
Se o analisarmos, por exemplo, sob o prisma da organização
do tempo na escola, ou das possibilidades de organização
curricular, que mantêm a alternativa disciplinar, vamos
constatar que mudou muito pouco. As mudanças mais profundas
e verdadeiras transitam num espaço interno, exigindo
de nós, profissionais da educação, alterações
no nosso modo de nos relacionarmos com o conhecimento, com
o trabalho, com nosso próprio desenvolvimento.
Mudar, no contexto do que se propõe hoje para o Ensino
Médio, significa abandonar alguns paradigmas sobre
o que é ensinar e aprender, revendo e revitalizando
nossos compromissos com a escola e o aluno.
Isso não é pouco, nem é fácil.
Mas é o desafio do nosso tempo: trabalhar de modo interdisciplinar
e contextualizado, a fim de atender a um projeto que não
é mais individual, mas coletivo, impõe mudanças
cuja operacionalização exige esforço
pessoal de cada um dos agentes envolvidos no processo educacional.
Em nossa resposta a esse desafio reside a grande mudança
que se pode dar na qualidade da educação oferecida
no Ensino Médio.
Várias escolas do Estado de São Paulo têm
realizado experiências bastante interessantes, que contemplam,
por exemplo, a flexibilização curricular, a
interdisciplinaridade e o protagonismo juvenil. Os resultados
mostram o quanto podemos avançar com relação
à melhoria da qualidade do ensino se ampliarmos e intensificarmos
essas experiências. Mostram, em suma, que, por mais
desafiadoras que sejam as propostas, não só
é possível responder a elas, como também
perceber que os esforços têm sido extremamente
compensadores: alunos, professores, pais e mães, professores-coordenadores,
diretores têm encontrado aí um caminho para um
trabalho aliado da solidariedade, da convivência, do
respeito pelas diferenças, da pluralidade e da democracia.
Equipe de Ensino Médio
Ghisleine Trigo Silveira
Coordenadora do Programa de Melhoria e Expansão do
Ensino Médio da Secretaria de Estado da Educação
de São Paulo.