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Estadão.com - 26.03.08 |
A vida imita a arte (II)
Roberto DaMatta
Quando se faz um paralelo entre a morte, e a morte de uma pessoa concreta e, acima de tudo, conhecida, como ocorre na história de Quincas Berro d''Água, coloca-se em relação direta a questão da finitude que todos aceitam teoricamente; e um complicado e aflitivo final concreto. É fácil admitir a finitude (todos os seres vivos nascem, crescem, reproduzem-se e morrem); mas é muito complicado aceitar que um conhecido chegou ao fim. Ninguém tem nada contra a morte, desde que não seja a sua ou dos seus entes queridos.
Na história de Quincas Berro d''Água, um narrador sem o controle total dos fatos vai, gradativamente, mostrando como um certo funcionário público de vida regrada e trivial, sujeito impiedosamente por muitas décadas de tirania conjugal, um tal de Joaquim Soares da Cunha, transformou-se no lendário Quincas Berro d''Água, pai de todas as prostitutas, maconheiros, malandros pequenos meliantes quando, um dia, assumiu a sua liberdade.
Joaquim era um dominado pelas convenções, um tipo como o próprio Jorge Amado, controlado e fiel ao Partidão; mas Quincas Berro d''Água tornou-se alérgico à própria água e apropriou-se de seu destino com tal destemor, que - reza a história repleta de meandros e pontos controversos - foi capaz de programar o seu próprio enterro, tendo múltiplas mortes. Porque como sabem os que abraçam a literatura, impossível, como dizem que ele teria dito ao falecer, não há.
De fato, ele morre pela primeira vez quando rompe com a casa; a segunda quando falece fisicamente no Pelourinho; a terceira quando a família lhe resgata o corpo e, com o atestado de óbito, legaliza oficialmente a sua morte como Joaquim Soares da Cunha; a quarta quando os amigos o visitam no velório e nele vêem um Quincas travestido de velho aposentado; a quinta quando - depois de ter sido devidamente ressuscitado pelo amor dos companheiros, e de ter tomado parte em muitas aventuras noturnas - desaparece no mar imenso e sem fronteiras da Bahia. E a sexta quando nós, leitores da sua vida, conseguimos, pela experiência estética conjugar esses dois espíritos que pertenciam a um só corpo, quando admiramos sua coragem de romper com as convenções, e de abraçar a utopia de um mundo sem rotinas, responsabilidades, deveres e trabalho.
A oposição entre uma vida na casa (como Joaquim Soares da Cunha) e outra na rua, como o legendário Quincas Berro d''Água, conduz a reflexão amadiana sobre as mortes que todos, em vida e, quem sabe, fora (e depois) dela, temos por vontade ou imposição. Pois quem não morreu para a paixão, a carreira, o concurso, ou o papel que lhe foi negado, mal interpretado, jamais lido ou, simplesmente, surripiado? Quem não teve dois ou mais nomes e descobriu-se múltiplo e feito de coisa pura e impura; incenso e podridão; ou, pior que isso, de muito mais de simples dualidades? E quem não foi revelado como o exato oposto de si mesmo nos exames, nas discussões de bar, nos tribunais ou nos descuidos reveladores das meias furadas?
Afinal, pergunta Jorge Amado por meio de Quincas e de Vasco Moscoso do Aragão, qual é a morte mais importante, se - de fato - morremos tanto e, no fundo, não vivemos apenas para morrer, mas de morrer? Seria a morte social que nos transforma o nome, fazendo-nos doutor, professor, deputado, Gisele, Pelé ou Lula; ou a morte física que nos leva para o confinamento absoluto? Mas quem é que foi levado somente para a cova e não teve uma segunda morte com a sua comunidade? Ademais, pergunta o nobre narrador amadiano com aquela singeleza que os seus críticos uspianos confundem com mediocridade, se tanto morremos, quantas vezes ressurgimos? E por meio de quem assim fazemos?
John Barrymore foi um superator. Morto, aos 60 anos, em 24 de maio de 1942, de pneumonia e cirrose hepática por causa do abuso de álcool, ele foi um elo básico numa linhagem que hoje sobrevive numa neta, Drew Barrymore.
Raoul Walsh (1887-1980) foi um diretor americano que fez tudo na história do cinema. Em 1915 foi ato
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Jornal O Estado de São Paulo
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