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O Estado de São Paulo - 28.04.08 |
Surto antiindígena
Boris Fausto e Carlos Fausto
Na última semana, certos órgãos de imprensa, ideólogos conservadores e setores militares sofreram um verdadeiro surto antiindígena, diante da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, que se arrasta há três anos, desde sua homologação. Curiosamente, seis (isso mesmo, seis!) arrozeiros que ocuparam terras públicas, reconhecidas como indígenas, nas três últimas décadas, tornaram-se, de um dia para o outro, vítimas de um suposto conluio, reunindo ONGs internacionais e setores do governo. Do baú se retiraram inúmeros fantasmas - “ameaça à soberania nacional”, “guerra étnica”, “internacionalização”, “risco ao desenvolvimento”. E a responsabilidade por essas ameaças passou a ser, para citar o título de um editorial do jornal O Globo, a “sandice indígena”. Mas a sandice é exatamente de quem? O que se esconde por trás dessas imagens de uma ameaça (pele) vermelha?
Trata-se, é claro, de uma campanha bem orquestrada, conectando uma situação regional ao espaço público nacional e às principais instituições da República. Mas quais são os fatos? A Polícia Federal foi chamada a fazer a desintrusão de uma área indígena quando já encerrado o procedimento homologatório. Alguns poucos produtores de arroz se armaram, com o apoio político local, para resistir, queimando pontes e ameaçando usar táticas terroristas. Esses produtores não possuem títulos legítimos sobre as terras que ocupam. Contudo, acatando ação proposta pelo governo de Roraima, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a operação da Polícia Federal, adiando-a até o julgamento do mérito da questão, em meio às críticas furiosas contra os direitos indígenas.
Por que falar em direitos? Porque os povos falantes de línguas das famílias karib e arawak que lá habitam são descendentes de populações que chegaram à região há, possivelmente, 3 mil anos. A partir do século 17, esses povos se viram colocados na intersecção do colonialismo português e holandês. Objeto de disputa entre as nações européias, sofreram ataques militares, foram escravizados, aldeados e catequizados, mas resistiram, numa fronteira que só seria definida em 1904, quando cessou um contencioso territorial entre o Brasil e a Inglaterra.
A Constituição de 1988 reconhece aos indígenas o direito a essas terras e a regulamentação complementar define o processo administrativo para tal reconhecimento. Isso não significa que os índios passem a ser proprietários da área: eles têm a posse, mas não o domínio, que pertence à União. Esse fato, aliás, foi bem ressaltado pelo então procurador da República, Gilmar Ferreira Mendes, no âmbito da Ação Cível Originária nº 362 (Estado de Mato Grosso versus União Federal e Funai), em 1987.
Se as terras indígenas são parte dos bens da União, cabe ao poder central protegê-las. O Exército ou a Polícia Federal podem (e devem) lá entrar para garantir a segurança da fronteira, combater atividades criminosas, enfrentar emergências sanitárias, etc. Note-se que, no caso de Roraima, foram os arrozeiros, e não os índios, que impediram a entrada da Polícia Federal. Por que, então, seriam as terras indígenas, e não as grandes propriedades privadas, que ameaçariam nossas fronteiras? E se os proprietários fossem grupos ou corporações estrangeiras, haveria ameaça maior, como certamente diriam os nacionalistas?
É triste constatar que se faça tanto alarde em torno de 1,7 milhão de hectares habitados por 18 mil índios, com ocupação ininterrupta por milhares de anos, e poucos se escandalizem com a apropriação ilegal de áreas imensas, às vezes maiores do que essa, por um só proprietário. Boa parte dos títulos de terra na Amazônia possui cadeias dominais duvidosas, gerando situações de superposição e de violência. Enquanto o Estado brasileiro não regularizar esta situação, o desenvolvimento econômico na região tende a ser um rótulo enganoso para a depredação ambiental, a reprodução da miséria e a usurpação do patrimônio público.
O que está em jogo nessa polêmica não é apenas a Raposa Serra do Sol. É um princípio consti
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Jornal O Estado de São Paulo
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