Duas narrativas de guerra |
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O Estado de São Paulo - 15.05.08 |
Duas narrativas de guerra
Demétrio Magnoli
'Um Estado judeu, um Estado democrático e toda a Terra de Israel. Não podemos ter todos os três elementos. O que podemos é decidir sobre dois deles. Podemos ter um Estado judeu e democrático, que não incluirá toda a área da Terra de Israel. Você pode ter um Estado judeu que não seja democrático e que integre toda a área de Israel, assim como podemos ter um Estado democrático que inclua todo o território, mas que não será um Estado judeu.' O diagnóstico, do escritor israelense Haim Beer, está em Israel, Terra em Transe, de Guila Flint e Bila Sorj (RJ, Civilização Brasileira, 2000). Ele sintetiza os dilemas de Israel, na hora em que israelenses celebram os 60 anos do Dia da Independência e palestinos pranteiam a Nakba (Catástrofe).
A terceira alternativa corresponde a um único Estado em Israel/Palestina. É a proposta dirigida a todos os cidadãos de Israel pela Aliança Nacional Democrática, um partido que nasceu entre a minoria árabe com cidadania israelense. Jamal Zahalka apresenta-a do seguinte modo: 'Aceite-me como um igual em seu Estado e eu o aceitarei como um igual em meu Estado.' À luz dos princípios da democracia, não há nada de errado com essa proposta - e, efetivamente, judeus e árabes seculares têm mais em comum uns com os outros do que os primeiros com os judeus ultra-ortodoxos e os segundos com os muçulmanos fundamentalistas.
Mas a utopia de um só Estado não está ao alcance da política realista. Para que ela tivesse uma chance o sionismo precisaria fracassar, o que ainda não aconteceu, e os palestinos precisariam demonstrar que podem erguer uma nação democrática, o que não está provado. Nessas circunstâncias, sobram apenas as alternativas da paz pela partição de Israel/Palestina em dois Estados e da guerra permanente, conduzida por um Estado judeu que renuncia à democracia para sustentar a ocupação dos territórios palestinos.
O projeto da paz pela partição quase foi atingido nas negociações de Taba (2001), que solucionaram os problemas territoriais e de fronteiras, mas se espatifou contra os rochedos gêmeos do estatuto de Jerusalém e do direito de retorno dos refugiados. Os temas condensam as narrativas paralelas que configuram as identidades nacionais israelense e palestina. Não haverá paz sem o sacrifício das duas narrativas.
A escritura nacionalista do sionismo tomou emprestada a pena da religião, ancorando o Estado judeu numa legitimidade de natureza bíblica. Daí derivou o lema da 'terra sem povo para o povo sem terra', que cancelou a existência dos árabes palestinos. Logo após a independência de Israel, por ordem de David Ben-Gurion, uma missão cartográfica se encarregou de substituir os nomes árabes por nomes hebreus, de ressonâncias bíblicas, nos acidentes geográficos do deserto do Neguev, imprimindo à paisagem conquistada os signos de uma tradição milenar. A negação da presença árabe expressou-se nos livros didáticos israelenses, que descreveram os 'nativos' como beduínos do deserto - bons selvagens, mas apenas figuras efêmeras numa paisagem sólida. A então primeira-ministra Golda Meir classificou os palestinos como jordanianos, eliminando por essa via expedita a inconveniente presença humana não-judaica na 'terra sem povo'.
Jerusalém, unificada militarmente na Guerra dos Seis Dias, em 1967, foi declarada capital 'eterna e indivisível' de Israel. A lógica do reconhecimento da nação palestina por Israel, nos Acordos de Oslo de 1993, solicita a admissão de um direito palestino sobre a parte árabe da cidade santa. Mas isso implica desistir do princípio bíblico da legitimidade de Israel. Em Taba, os representantes israelenses ousaram aventurar-se nessa estrada, sugerindo conceder uma sede de governo palestino nos arrabaldes de Jerusalém. Na jornada da paz, Israel terá de trilhar a estrada inteira, aceitando compartilhar com os palestinos a Cidade Velha.
No fim da guerra de 1948-49, os refugiados palestinos somavam cerca de 700 mil. De lá para cá, os seus povoados e pom
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