O Estado de São Paulo - 19.06.08

Via-Láctea é uma espiral com dois braços, diz estudo

Imagens coletadas pelo telescópio Spitzer, da Nasa, confirmam teoria brasileira sobre formato da galáxia

Herton Escobar

Imagine ter de descrever a aparência externa de uma casa sem nunca ter saído dela, espiando apenas pelo vidro das janelas. Esse é o desafio dos cientistas que tentam desvendar a estrutura da Via-Láctea - a galáxia na qual reside o sistema solar. Segundo o modelo clássico, seria uma galáxia espiral com quatro “braços”. Estudos recentes, porém, revelam que ela tem apenas dois braços, confirmando uma previsão feita por astrônomos brasileiros e americanos em 2005.


A “amputação” foi feita com base em 800 mil imagens do telescópio espacial Spitzer, da Nasa, nas quais podem ser vistas 110 milhões de estrelas. Os resultados foram divulgados no início do mês, em encontro da Sociedade Astronômica Americana. Segundo o especialista Augusto Damineli, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da Universidade de São Paulo (USP), os dados ainda não permitem calcular exatamente a distância entre os braços - se estão bem abertos ou fechados -, mas confirmam o modelo previsto de dois membros, em vez de quatro.

“É um vexame sabermos mais sobre o que acontece na casa do vizinho do que na nossa própria casa, não acha?”, lamenta-se, ainda, Damineli.

A grande dificuldade dos cientistas é que eles não têm como sair da Via-Láctea para olhá-la de fora. Os desenhos da galáxia precisam ser feitos indiretamente, “de dentro de casa”, usando radiação infravermelha (a especialidade do Spitzer) para calcular a distância de estrelas presentes nas imagens espaciais. Isso permite aos pesquisadores mapear as áreas com maior densidade de estrelas e, por tabela, projetar a localização dos braços espirais.

A galáxia é basicamente um enorme disco de gás e poeira em rotação, com diâmetro de 100 mil anos-luz (o que significa que levaria 100 mil anos para ir de uma ponta a outra, viajando à velocidade da luz). No centro fica uma “barra” de estrelas mais antigas e um buraco negro gigante (invisível nas imagens). Os braços são as áreas do disco onde o gás é espremido a densidades maiores. É dentro deles que nascem as estrelas, que depois são “empurradas” para fora - como aconteceu com o Sol, uma das estrelas, entre 200 bilhões, que povoam a Via-Láctea.

“Os braços são como berçários, estão sempre cheios de bebês, mas não são sempre as mesmas crianças. As que crescem vão embora e são substituídas por outras”, explica Damineli.

O modelo original da Via-Láctea tinha quatro braços chamados Norma, Scutum-Centauro, Sagitário e Perseu. Com base nas imagens do Spitzer, dois foram amputados. Ficaram Scutum-Centauro e Perseu, presos à barra central, enquanto Norma e Sagitário foram reclassificados como braços secundários, com bem menos gás e estrelas. O Sol e a Terra estariam numa espécie de apêndice interno, chamado Órion.

CONFIRMAÇÃO

O Spitzer está neste momento apontado para a região onde deveria estar o braço de Sagitário. Se ele não enxergar nada, será a confirmação de que o novo modelo é correto, segundo o astrônomo Robert Hurt, do Centro de Ciências Spitzer. “Se nossa previsão estiver certa, não deve haver um braço lá”, disse.

Cientistas do IAG também continuam a calcular distâncias estelares para aprimorar o modelo, com base em imagens dos telescópios Gemini e Soar - nos quais o Brasil tem participação. “Dentro de um ano, no máximo, vamos botar mais uma carta na mesa”, prevê Damineli.

Dez anos atrás, ele e outros brasileiros, em colaboração com o americano Peter Conti, da Universidade do Colorado, perceberam que as medições originais, feitas com ondas de rádio, eram incompatíveis com o modelo de quatro braços. Começaram a refazer as contas no infravermelho e perceberam que o modelo de dois braços era mais factível, mas os dados ainda eram insuficientes para “bater o martelo”.

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