A carta que blindou a democracia brasileira |
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O Estado de S. Paulo - 02.10.08 |
A carta que blindou a democracia brasileira
Há 20 anos era promulgada a Constituição que garantiu estabilidade institucional ao País
Carlos Marchi, de O Estado de S. Paulo
SÃO PAULO - \"Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca\", disse o deputado Ulysses Guimarães, no dia 5 de outubro de 1988, no histórico discurso com que declarou promulgada a Constituição Cidadã. Vinte anos depois, a frase de Ulysses soa profética. O País atravessou os últimos 20 anos sem sofrer qualquer ameaça de fratura institucional, a despeito de ter processado um impeachment e ter sido governado por todos os quadrantes do arco ideológico. A Constituição gera controvérsias até hoje. Muita gente a critica, mas todos lhe reconhecem passagens memoráveis. Ninguém a afrontou.
A Constituição mudou o perfil do eleitorado brasileiro, ao promover a inclusão eleitoral quando estendeu o direito de voto aos analfabetos, que antes não podiam ser eleitores, e, em caráter facultativo, aos jovens entre 16 e 18 anos.
Fez mais: recompôs admiravelmente os direitos e garantias individuais, criou o habeas-data, que permite ao cidadão conhecer o que o Estado sabe dele, consagrou o Código do Consumidor, uma eficaz cartilha de cidadania, foi a primeira Carta a mencionar a proteção ao meio ambiente, determinou a demarcação das terras indígenas.
Mas a Constituição que reconstruiu o País a partir dos escombros da ditadura é também a que tornou o Brasil mais difícil de governar. Tem um notável capítulo de direitos e garantias individuais, mas exigiu a reforma de quase todo um capítulo econômico para que o País pudesse funcionar. Exibe passagens grandiosas, como a qualificação do racismo como crime inafiançável e imprescritível, e propostas bizarras, como tabelar os juros em 12% ao ano. Criou deveres rigorosos para o Estado, mas não lhe deu meios para cumpri-los. Inspirou a cidadania, mas ignorou a reforma política.
O ex-presidente José Sarney, um de seus mais ácidos críticos, repete hoje o discurso de 1989: \"Ela tornou o Brasil ingovernável.\" O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso critica: \"Ficou ambígua, não é presidencialista nem parlamentarista.\" Mas foi sob ela que o Brasil atingiu o mais longo período de democracia de sua História, uma singular vantagem comparativa ante seus concorrentes diretos no mundo - os outros países do grupo Bric, Rússia, Índia e China.
Vinte anos mudam as pessoas: eleito constituinte pelo PDS, Delfim Netto, ministro do regime militar e signatário do AI-5, diz agora que o capítulo dos direitos individuais da Constituição \"beira o estado da arte\". E José Genoino, eleito em 1986 como expoente do Partido Revolucionário Comunista dentro do PT, conta que chegou à Constituinte com um discurso revolucionário radical e saiu de lá como entusiasmado adepto da democracia.
Com seu discurso na cerimônia retumbante de 5 de outubro de 1988, Ulysses marcou o encerramento de 20 meses do mais intenso e prolongado embate político-ideológico já ocorrido no País em períodos democráticos. Convocada em junho de 1985 por mensagem presidencial, a Assembléia Nacional Constituinte (ANC) foi eleita em novembro de 1986, no auge do sucesso do Plano Cruzado de Sarney e do seu partido, o PMDB, que fez 22 dos 23 governadores do País e obteve esmagadora maioria parlamentar. O PMDB elegeu 302 parlamentares (54% do plenário); seu aliado preferencial, o PFL, hoje DEM, fez 133; reunidos, os dois sócios da Aliança Democrática dominavam 80% da ANC. Os partidos de esquerda juntos tinham 9,5%.
A ANC tinha 559 membros - 72 senadores (inclusive 23 biônicos remanescentes) e 487 deputados -, filiados a 12 partidos. Nela operaram 24 subcomissões, 8 comissões e uma Comissão de Sistematização de 93 membros, a arena da grande luta sustentada entre progressistas e conservadores.
Foi a única vez na História que uma Constituição brasileira começou a ser feita coletivamente a partir do zero -
http://www.estadao.com.br/nacional/not_nac251796,0.htm
O Estado de S. Paulo
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