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Folha Online - 01.12.08 |
A síndrome de Truman
A epidemia do século 21 já tem nome: "Síndrome de Truman". O nome pertence a filme de 1998, "The Truman Show/ O Show de Truman", com Jim Carrey no papel principal. Não lembram? Eu lembro: o personagem de Carrey era um simpático vendedor de seguros que, gradualmente, descobre a fraude existencial que o envolve. A sua vida, desde o berço, é apenas um gigantesco "reality show", filmado por câmeras ocultas 24 horas por dia. E todas as pessoas que o rodeiam --mulher, família, vizinhos, amigos e inimigos-- são meros actores contratados para representarem seus papéis.
O filme termina em registro heróico, com Carrey a libertar-se do pesadelo, ou seja, abandonando o estúdio onde viveu encerrado (e filmado) durante décadas.
Acontece que o pesadelo já emigrou para a realidade. Leio agora na imprensa do dia que cresce assustadoramente o número de pessoas que acredita genuinamente que a vida não lhes pertence. Pertence a um produtor televisivo que montou uma gigantesca ilusão em volta. Como no filme de Jim Carrey, esta gente-se sente-se vigiada por câmeras imaginárias e olha para as respectivas vidas como se apenas estivessem a cumprir um roteiro pré-escrito.
Não confiam na família. Não confiam nos amigos. Não confiam em ninguém. E há mesmo casos de tentativas de suicídio por criaturas transtornadas que não aguentam "continuar" no "show". Uma das histórias mais pungentes pertence a um anónimo norte-americano que, cansado de "representar", entrou num edifício do governo federal e implorou, de joelhos, para que desligassem as câmeras e terminassem com o programa. Ele queria, simplesmente, sair.
E os médicos? Os médicos têm uma palavra importante, a começar pelos psiquiatras. Mas, como os próprios admitem, o caso não é simples de resolver. Desde logo porque eles próprios são vistos pelos pacientes como parte do engodo. Os médicos não são médicos. São atores, vestidos de bata branca, que tentam convencer o doente de que ele está doente.
Não pretendo levantar polémicas inúteis. Mas, confrontado com a epidemia, eu próprio duvido da doença dos doentes. E pergunto, inteiramente a sério, se eles não serão as únicas pessoas lúcidas no meio da loucura reinante.
Um pouco de história talvez ajude: durante séculos, a posição que ocupávamos em sociedade era determinada pelo berço em que nascíamos. Nascer no berço errado, em circunstâncias de pobreza material e cultural, era meio caminho andado para uma vida igualmente pobre e lúgubre. Existem todas as exceções do mundo, claro. Mas as exceções apenas servem para comprovar a tese: a nossa posição em sociedade era uma questão de sorte, não de mérito.
Com o fim da Primeira Guerra Mundial, e o enterro do Velho Mundo que o conflito arrastou consigo, tudo mudou. O berço continuou a ter palavra importante. Mas não mais decisiva. O mérito passou a determinar o nosso lugar em sociedade. Em teoria, e sobretudo na prática, seria possível, ao filho de um pobre, entrar nos salões de um rico. Bastava, para isso, que o pobre ganhasse o dinheiro necessário para os comprar. As nossas sociedades são a prova provada de que a meritocracia vingou e que o "self-made men" derrotou grande parte dos preconceitos de classe.
E hoje? Hoje, como escreve Toby Young em recente ensaio para a revista "Prospect", a era meritocrática foi enterrada. Depois do berço e do mérito, chegámos à era da celebridade. Podemos nascer no berço certo; podemos até subir a corda social com os nossos próprios pulsos, provando o nosso valor intrínseco; mas se não somos "famosos", ou seja, se não alimentamos o voyeurismo coletivo em que vivemos, não somos rigorosamente nada. Vivemos em sociedades mediatizadas e massificadas. E numa sociedade mediatizada e massificada, é o anonimato, e não a pobreza ou a incompetência, que pesa profundamente sobre a espécie.
Não é de admirar, por isso, que uma parte crescente de seres humanos se sinta cansada do circo instalado; se sinta cansada, enfim, de um mundo de celebridades ocas que, na verdade, parece um "reality show" permanente.
http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/joaopereiracoutinho/ult2707u473451.shtml
Folha de São Paulo
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