O homem que desejava um sonho |
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Crônica de Ignácio L. Brandão em O Estado de S.Paulo 24/10/2003 |
Ele se aproximou do balcão da confeitaria. Vestia uma calça surrada e a camiseta estava limpa, mas indicava ter sido lavada e não passada. Tinha o rosto arranhado e os braços estavam lanhados.
- Quanto custa um sonho?
- R$ 2,10.
- Caro! E um copo de groselha?
- Groselha?
- Isso. Groselha misturada com água.
- Não vendemos groselha por copo. Só em litro, o xarope.
- Ah! E o recheio do sonho é do quê?
- Doce de leite ou creme de baunilha.
- Pode deixar um sonho por R$ 1,00?
- Não!
- Nem pedindo pelo amor de Deus?
- Nem pelo amor de Deus nem pelo amor dos meus.
- Por que?
- Tenho de fazer a comanda e colocar o produto e o preço para você pagar no caixa. O patrão confere tudo no final da noite.
- Diz que era sonho de ontem e você deu abatimento.
- Aqui não existem sonhos de ontem.
- Como não?
- A confeitaria é famosa pelos produtos frescos. No fim do dia, recolhem todos os doces, doce estraga fácil, fermenta.
- O que fazem com os doces recolhidos?
- Não sei, vai tudo numa caixa que o patrão leva. Acho que dá para caridade, distribui à noite para os sem teto.
- Sabe onde distribuem?
- Não, não sei dessas coisas. Qual é, ô meu? Olha a fila! Vai comprar?
- Só tenho R$ 1, 00.
- Pede a alguém para completar!
- Não sou mendigo.
- Qualquer um completa, é pouco!
- O senhor já pediu alguma vez?
- Não!
- Não conhece a humilhação pelo olhar. As pessoas parecem ter nojo.
- O senhor exagera.
- Não. Já pedi. Senti. Dói mais do que a fome. Do que a vontade.
- O senhor é orgulhoso!
- Não, sou gente.
- Para que quer um sonho e um copo de groselha?
- Para minha companheira.
- Onde ela está?
- No hospital. Foi atropelada por um motoqueiro.
- E o senhor? Também foi atropelado?
- Não!
- E esses machucados?
- Apanhei dos motoqueiros. Quando briguei com o motoqueiro que atropelou, pararam cinqüenta motos. Nem quiseram saber, caíram de pau em cima de mim, depois fugiram.
- E sua companheira?
- Está internada e queria comer um sonho, é o que mais gosta. Naquele pronto-socorro do SUS não dão nada, é uma miséria.
O vendedor se afastou, chamado por um mulher de avental impecável. O homem de rosto lanhado contemplou a vitrine havia bolos de chocolate com cobertura envernizada, tortas mostrando recheios vermelhos, amarelos e brancos, polpudas, sensação de serem macios, desmancharem na boca. A confeitaria era grande e havia mesas onde as pessoas tomavam café, comiam sanduíches de pão branco, sem casca, havia pratinhos com minicoxinhas, empadas, croquetes. A mulher de avental branco impecável estava a segui-lo, com olhar desconfiados, mas ele não percebeu. O que fazer para ter o sonho? Se alguém acabasse, levantasse e deixasse alguma coisa intocada em um daqueles pratinhos, ele teria coragem de apanhar, disfarçando. Deixariam? Um homem de terno preto, camisa preta, gravata preta aproximou-se.
- Vamos lá, companheiro! Não vem pedir aqui.
- Veio comprar, não comprou. O que queria?
- Um sonho.
- Por que não levou?
- Meu dinheiro não dá!
Leia a íntegra em:
http://www.estado.estadao.com.br/colunistas/loyola.html
O Estado de São Paulo
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