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O anjo flautista


Artigo de Rubem Alves no Correio Popular
23/10/2003

Minha primeira lição sobre os anjos aconteceu silenciosamente, numa cadeira de barbeiro. Menino, eu ficava a olhar para aquele quadro tão bonito, o menino e a menina caminhando pelo bosque, prontos a atravessar uma pinguela sobre um abismo, e um anjo de enormes asas brancas a protegê-los. Que coisa boa, ter um anjo que cuida para que nada de mal nos aconteça! Num mundo guardado por Anjos da Guarda a alma descansa sem medos! Minha segunda lição aconteceu nas procissões católicas que eu observava de longe, desconfiado... As meninas se vestiam de anjo. E a marca da sua angelicalidade eram as enormes asas brancas costuradas às suas costas. Curioso: acabo de me dar conta de que nunca vi um menino vestido de anjo. Talvez por faltar aos meninos a pureza e a doçura peculiar às meninas inocentes. Mas a visão daquelas criaturas aladas não me fazia pensar nos céus. Pensava, sim, nos grasnados de dor dos patos e dos gansos que tiveram suas penas arrancadas a sangue frio para que as meninas tivessem asas celestiais. Definitivamente os anjos das meninas não se importavam com o sofrimento dos patos e dos gansos. Não eram adeptos da filosofia de reverência pela vida.

Incrédulo que sou, preciso dos olhos para acreditar. Acontece que nunca vi um anjo alado, embora muito tenha me esforçado. Assim acabei por desacreditar. Mas minha descrença acabou quando, ao ler as Escrituras Sagradas, fui informado de que o normal dos anjos é aparecerem como seres humanos comuns sem asas e auréolas, como foi o caso dos dois anjos que visitaram Abraão e Sara, o que é também confirmado pelo filme Cidade dos Anjos. Aprendi, então, que a característica dos anjos não são as asas mas uma outra coisa mais sutil. Explico-me.

A ciência, essa maravilhosa ferramenta de saber e poder inventada pelos homens, nos ensina que, para se compreender qualquer coisa é preciso que se vá até as suas causas. Tudo, mas tudo mesmo, tem uma causa. Obediente a essa exigência científica a psicologia trata de investigar as origens dos seres humanos para encontrar explicações para o que são, no presente. O homem é mau, gosta de fazer os outros sofrer, desordeiro, mentiroso, vigarista: como explicar essa aberração? A resposta está nas causas que se encontram no seu passado. Passou fome, apanhou do pai, a mãe era prostituta, não foi à escola. Ao contrário, uma pessoa boa tem de ter um passado bom: pais amorosos, lar estável, comida nas horas certas, boas escolas. Está certo. É assim mesmo. Vale para a maioria dos casos. Mas há casos que não há causa passada que explique. O que levou a Adélia a desacreditar da psicologia: “É capaz de a psicologia ser ciência mesmo. Se for, me avisem”. Vejam o caso do Nelson Freire, assombro pianístico. Nasceu em Boa Esperança, como eu, cidadezinha que nada sabia da tradição pianística. Piano, lá, era tão raro que quando o piano Pleyel de minha mãe chegou da França, presente de casamento, numa caixa de madeira, o carpinteiro que foi chamado para desencaixotar o piano vestiu um fraque. Não me acreditam? Pois é verdade. A cidade nada sabia sobre Bach, Beethoven, Chopin, Brahms – mas o Nelson Freire nasceu sabendo. Sem que ninguém lhe ensinasse tocou piano aos três anos de idade. Como explicar esse saber sem causas? A única explicação é que ele é irmão do Pequeno Príncipe. As causas que o explicam estão num asteróide distante, morada dos pianos e da música. E ele nasceu para nos trazer a felicidade da beleza da música. O mesmo não se pode dizer de Monet, de Beethoven, de Van Gogh, do Chico, do Milton, de Fernando Pessoa? O caso da bondade é mais facilmente explicável. E isso porque é possível fingir de bom, só por malandragem. Mas não é possível fingir de pianista, de pintor, de poeta –muito embora vários insistam em tentar. Vale o dito pelo educador português Vergílio Ferreira (1916-1996): “Só se consegue aprender o que nos não interessa. Porque o mais, o que é do nosso fundo destino, somo-lo”. Ao que Guimarães Rosa diz amém: “O que vou saber sem saber eu já sabia...”

Percebi então o meu equívoco: as asas dos anjos não são asas de pato e ganso. Voam

http://www.cpopular.com.br/colunista/rubem/

Correio Popular

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