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Artigo de Rubem Alves no site Aprendiz 13/02/2004 |
Não escrevi nada sobre a Hilda Hilst. A sua poesia me deixa mudo. Quando a leio tenho a sensação de estar no meio de uma floresta densa, encantada, cheia de mistérios. Frost escreveu: "Os bosques são belos, sombrios, fundos..." Nos bosques belos, sombrios, fundos há silêncio. Assim eu faço silêncio diante da Hilda e da poesia que a escolheu. Sinto que cada palavra minha seria profanação de um lugar sagrado.
É preciso entender que os poetas nunca falam sobre as coisas sobre que estão a falar. Falam sobre as coisas para falar sobre si mesmos. É isso que são as metáforas. Retratos da alma. Fernando Pessoa escreveu sobre as estrelas... Tão distantes. Mas era sobre si mesmo que falava. "Tenho dó das estrelas / luzindo há tanto tempo, / há tanto tempo.../ Tenho dó delas. / Não haverá um cansaço das coisas, / de todas as coisas, / como das pernas ou de um braço? / Um cansaço de existir, / de ser, / só de ser, / o ser triste brilhar ou sorrir.../ Não haverá, enfim, / para as coisas que são, / não a morte, / mas sim uma outra espécie de fim, / ou uma grande razão - qualquer coisa assim / como um perdão?" Sim, ele estava muito cansado. Seu cansaço deveria ser tão grande como o cansaço das estrelas, brilhando sem fim, desejando apagar e dormir.
Debussy musicou um poema de Mallarmé, "La Cathèdral Engloutie", a catedral submersa. Ouvindo a música a fantasia nos leva para as funduras do mar, a luz se filtrando através das águas inquietas, vitrais de corais, anêmonas, peixes coloridos e os nossos olhos, "dois baços peixes", à procura, encantados. E se ouve o som dos sinos misturado ao silêncio das águas... Místico.
Pensei em escrever um poema parecido, "La biblioteque engloutie", a biblioteca submersa... Essa idéia me veio quando me lembrei de algo que aconteceu em 1964. Eu acabara de voltar dos Estados Unidos onde passara um ano, estudando. Logo depois do golpe. Meus livros haviam ficado em Lavras, Minas, onde eu fora pastor de uma igreja presbiteriana. Eu havia sido delatado como subversivo embora jamais tenha pertencido a qualquer organização política. Por todos os lados pululavam os delatores.
Em tempos de violência política a delação é uma prova de amor e subserviência aos donos das armas. A delação liga os delatores aos poderosos, o que lhes dá uma deliciosa sensação de poder impune: "Os outros estão à mercê da minha palavra!". Precisava eliminar as provas da minha subversão. Os livros. Em tempo de ditadura pensar é crime. Só se permitem hinos patrióticos. Livros completamente inocentes. Um deles, "Communism and the theologians", um simples relatório de opiniões de teólogos sobre o comunismo, tinha a capa vermelha com a foice e o martelo. Não poderia esperar que o capitão inquisidor soubesse inglês e se desse ao trabalho de ler. As fogueiras já estavam acesas. Era preciso encontrar as bruxas para justifica-las. Os militares haviam tomado conta da cidade. Muitas pessoas presas. Eu seria uma das próximas. Impossível queimar os livros. Um amigo meu, Sílvio Modesto, fazendeiro, fez a sugestão: que eu ensacasse os livros e ele os jogaria no fundo do rio Grande. Foi o que fiz. Dezenas de livros foram para o fundo do rio Grande. Devem estar lá, acervo da biblioteca submersa "Rubem Alves", frequentada por lambaris, piabas e dourados... Algum compositor se oferece para musicar o meu poema?
Patativa do Assaré: "Prá gente aqui ser poeta /não precisa professor. / Basta vê no meis de maio / um poema em cada gaio /um verso em cada fulô." "Prefiro falá as coisa certa com as palavra errada a falá as coisa errada com as palavra certa".
Leia o artigo na íntegra em:
http://www2.uol.com.br/aprendiz/colunas/ralves/id130204.shtml
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