Os índios, a felicidade e a caverna |
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Artigo de Hélio Schwartsman na Folha de S.Paulo 29/04/2004 |
Que índios podem ficar violentos, não é exatamente uma novidade. Os primeiros colonizadores experimentaram a impetuosidade dos nativos das Américas na carne. Que o digam o bispo Sardinha ou os chamados pioneiros, que desbravaram o oeste americano, e, com base em suas interações, cunharam a expressão: "índio bom é índio morto". A tese do bom selvagem foi postulada por pessoas que guardavam uma prudente distância dos povos da floresta --mais de 10.000 km e um oceano, no caso do nosso querido Jean-Jacques Rousseau.
Antes que o leitor me entenda mal, não estou, como John Wayne e o sindicato do garimpeiros d'Espigão d'Oeste, defendendo uma solução final para os índios. Muito pelo contrário, li Rousseau e dois ou três antropólogos, o que fez de mim um apreciador das culturas indígenas --que são um excelente atalho para aprendermos um pouco mais sobre nós mesmos. Não sou romântico o bastante para imaginar que os índios, em sua suposta relação harmônica com a natureza (o que é uma outra bobagem), encarnem a bondade do homem em sua pureza original. Ao contrário, estou entre os que crêem que, em seu estado natural, o homem é ainda pior do que depois de devidamente domesticado pela civilização. Mas prossigamos com calma, pois já estou antecipando conclusões.
Confrontar sociedades distintas é sempre um problema. Se fagulhas chispam até do encontro de civilizações culturalmente próximas, como a européia cristã e a islâmica, tudo fica muito mais dramático quando o choque se dá entre entre grupos tão díspares em termos históricos, tecnológicos e demográficos como o são os judaico-cristão de origem européia e os autóctones das Américas.
Não é preciso a argúcia historiográfica de um Heródoto para perceber que a balança está pendendo para o lado do chamado Ocidente. Desde os primeiros encontros, lá pelos últimos anos do século 15 (desprezemos aqui os contatos entre nórdicos e americanos nativos em torno de 1000 d.C.), os índios só levaram a pior. Foram dizimados pela gripe, pela varíola, pela pólvora e pelo álcool. Tiveram de entregar aos colonizadores seu ouro e sua prata. Deram-lhes ainda as batatas e os tomates. (A título de vingança, os bravos peles-vermelhas remeteram a seus algozes também o tabaco e, dizem, a sífilis --estudos mais recentes, contudo, negam a hipótese americana para a emergência do mal-de-coito na Europa). Em troca, os bons selvagens receberam, além de alguns espelhinhos, o coco e a manga, que, por mais que os apreciemos, parecem uma paga muito pequena pelas inconveniências sofridas.
Há poucas certezas na história, mas uma delas é a de que as comunidades nativas não sobreviverão intactas por muito tempo mais. Por maiores que sejam nossos esforços de demarcar terras indígenas e evitar todo contato no caso das tribos ainda isoladas, sabe-se que essa situação não durará para sempre. Mesmo em reservas, os índios tendem a aculturar-se, e contam-se nos dedos hoje as aldeias que seguem livres de toda interação com os brancos.
Considerando-se que a assimilação é um processo inexorável, alguém mais cínico poderia perguntar, então, se não é o caso de darmos uma mãozinha para as forças da história e catequizarmos rapidamente os índios, para a civilização e para Deus. Pessoalmente, repudio essa "solução", mas é preciso reconhecer que existem situações delicadas, nas quais torna-se difícil manter uma posição de total não-interferência. Imaginemos que uma maloca intocada enfrente um surto de diarréia bacteriana que ameace todas as crianças. Deveríamos, num caso como esse, nos abster de levar antibióticos ao grupo para mantê-lo "virgem"? É claro que não.
Veja a íntegra do artigo em:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/ult510u141.shtml
Folha de São Paulo
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