Quarto de Badulaques XXXVIII |
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Artigo de Rubem Alves no site Aprendiz 01/10/2004 |
Sociedades se constroem quando os homens concordam sobre coisas grandes. A amizade acontece quando os homens concordam sobre coisas pequenas. Faz tempo escrevi um artigo longo sobre um tema que esqueci. O dito artigo provocou, num dos meus leitores do sul de Minas, um carta. Escreveu-me não para comentar o artigo – irrelevante – mas para dizer que ficara comovido porque, num certo lugar, eu falara sobre “o cheiro bom do capim gordura”.
A partir dessa imagem a um tempo visual e nasal - pois havia a visão do campo de capim gordura e o cheiro do capim gordura - ele se pôs a descrever sua experiência diária: passava, de manhãzinha, sol ainda não nascido, por um campo coberto de capim gordura. “ O silêncio verde dos campos...” E havia a névoa misteriosa que tudo envolvia. De vez em quando, o barulhinho de algum regato que corria invisível, coberto pela vegetação.. E, saindo dele, como se fosse sua respiração, seu mais profundo segredo, o perfume. Mistério.
Mistério, essa palavra misteriosa. Em inglês a palavra mistério se escreve “mystery”. Pois um dia, por inspiração imediata, passei a escrevê-la de uma forma diferente: misteerie. “Mist” é neblina. “eerie” quer dizer assombroso, que provoca medo. Acho que minha grafia, inspirada na poesia, é melhor que a grafia do dicionário, derivada da etimologia. Essa é a minha contribuição para a língua inglesa. É isso que se sente de manhãzinha, sozinho, ao caminhar pelos campos de capim gordura. Não há igreja, templo ou santuário que se lhe compare. Essas caixas de tijolo e cimento que os empresários da religião constroem para engaiolar o sagrado, na maior parte das vezes provocam-me o sentimento oposto, de horror estético. Deus deve ter muito mau gosto...
Pois é: quando li aquela carta imediatamente me descobri amigo daquele homem distante. Se não me equivoco o seu nome era Gerson, e vive em Poços de Caldas. Sempre que vejo capim gordura me lembro dele. De todo o palavrório que escrevi naquele artigo, o que sobrou, o que valeu, foi uma imagem imobilizada num momento eterno: o capim gordura, com o seu cheiro bom... (Desgraça: os criadores de gado, para terem mais lucro, acabaram com o capim gordura e o substituíram por uma praga africana chamada braquiária, que é um câncer nos pastos que nem a quimioterapia mais violenta pode com ele... ).
Como aconteceu com o Pequeno Príncipe e a raposa. O Pequeno Príncipe, contra vontade, cativara a raposa, a pedido dela. Mas chegou a hora da despedida e a raposa disse: “Vou chorar”. O Pequeno Príncipe retrucou: “ Não é culpa minha. Eu não queria te cativar. Agora você vai chorar. Qual foi a vantagem?” Respondeu a raposa: “A vantagem? Os campos de trigo. Eu sou uma raposa. Como galinhas. O trigo me é indiferente. Mas você me cativou. Seu cabelo é louro. Os campos de trigo são dourados. Porque você me cativou sempre que o vento balançar as espigas douradas de trigo eu me lembrarei de você. E sorrirei...”
É isso que é um sacramento: uma imagem carregada de emoções. O sacramentos são símbolos que têm o poder de invocar ausências. Poesia é isso: imagens carregadas de emoções... Quem não tem poesia é pobre nas emoções. E, necessariamente, pobre no amor. Escrevi uma crônica em elogio à calvície. Eu nunca imaginei que uma calva fosse um objeto poético. Nunca li poema algum sobre a calvície... Só se fosse um poema cômico, de fazer rir. Foi isso que aconteceu com a coleguinha da minha neta que caiu na risada ao ver-me careca, numa foto?.
Pois o Artur da Távola me enviou um e-mail... Já escrevi sobre ele várias vezes. Ele apresenta o programa “Quem tem medo de música clássica?” na TV Senado e não se cansa de repetir: “Música é vida interior. E quem tem vida interior nunca está sozinho.” Emociona-me seu amor pelas crianças. Está sempre pedindo aos pais que chamem os seus filhos para ver e ouvir música clássica. Uma amiga, separada, segredou a outra amiga que nunca mais se casaria, a não ser que fosse com o Artur da Távola...
Veja a íntegra em:
http://www2.uol.com.br/aprendiz/n_colunas/r_alves/index.htm
Aprendiz
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