Saci enfrenta o Halloween |
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Publicado pelo O Estado de S.Paulo 31/10/2005 |
(Matthew Shirts )
Há alguns anos, sempre que se aproxima o dia 31 de outubro, meu amigo Vladimir Sacchetta, ilustre pesquisador e autor, começa a me contar histórias do Saci-Pererê. Vladimir é sócio-fundador, para não dizer militante, da Sociedade dos Observadores de Saci, a Sosaci (www.sosaci.org). O objetivo declarado dele é fazer com que eu dedique uma crônica à história do perneta. Pelo jeito, conseguiu.
Não sei se você sabe, mas no Estado e na cidade de São Paulo, em São Luís do Paraitinga e São José dos Campos, e em outros municípios, hoje é, oficialmente, o Dia do Saci.
Tramita, ainda, no Congresso Nacional projeto de lei federal que visa a instituir o reconhecimento dessa data em todo o território brasileiro. O artigo 2 do projeto explicita sua finalidade: "O Poder Público ... apoiará as iniciativas, programas e atividades culturais de entidades públicas, em cooperação com a sociedade civil, que poderão contribuir para a celebração do folclore brasileiro, através do Saci e de seus amigos (Iara, Curupira, Boitatá e tantos outros)." Entre os autores do projeto está, é claro, o atual presidente da Câmara, o deputado Aldo Rebelo. Mas até onde entendi, se o projeto de lei passar, o dia 31 de outubro não será feriado nacional... infelizmente.
Confesso que nunca vi nenhum Saci. Há, inclusive, controvérsias sobre se ele já apareceu para americanos, ou não. Ouvi dizer, não sei se é verdade, que o lendário estudioso da cidade de São Paulo Richard Morse teria avistado um na década de 40, mas como foi depois de uma noitada regada a muito vinho, na companhia de Anita Malfatti e outros modernistas, não se sabe é verdade ou não. Pode ter sido apenas um quadro pintado pela artista plástica.
De qualquer forma, a figura do Sacy é intrigante. Foi cultivado por Monteiro Lobato no começo do século 20, nas páginas da edição vespertina deste jornal. De acordo com o livro Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia (do Sacchetta, Marcia Camargos e Carmen Lucia de Azevedo, Ed. Senac, 1997), o escritor descrevia Sacy como "um moleque pretinho, de uma perna só, com pito acesso na boca, gorro na cabeça e olhos vermelhos, feito um beberrão, mais astuto e menos assustador do que muitas outras criaturas fantásticas, como o lobisomem ou a mula-sem-cabeça. Malicioso e zombeteiro, fazia antes molecagens que maldades. 'Monta e dispara os cavalos à noite; chupa-lhes o sangue e embaraça-lhes a crina'."
Sua origem é indígena, aparentemente: o saci resulta de corruptela do tupi-guarani "Çaa cy perereg". Sobrevive à colônia e ao império, evoluindo sempre e, graças ao gorro vermelho, poderia andar entre os jovens adeptos do hip-hop, atualmente, sem despertar maiores curiosidades.
Até aí, tudo bem, sou Saci e não abro. Só não vejo a necessidade de contrapor o Dia do Saci ao Halloween, também festejado hoje. De acordo com um dos projetos de lei apresentados ao Congresso: "A escolha do dia 31 de outubro, quando é comemorado o Halloween (Dia das Bruxas) nos Estados Unidos, festa que a cada ano atrai mais crianças, é proposital... Em vez de bruxas e gnomos, a manifestação cultural deve valorizar figuras folclóricas que se refiram às tradições brasileiras. Afinal, o saci é da nossa cultura e uma síntese das três raças que estão na origem da nação brasileira - o índio, negro e o branco."
E por que não as duas festas? Afinal, o Halloween está entre as comemorações americanas mais animadas. De origem celta, foi incorporada pelo império romano e, no século 19, levada aos Estados Unidos pelos imigrantes irlandeses. É, de certa forma, o carnaval americano. Começa com a "matinê das crianças", quando estas vão de porta em porta pedindo balas e chocolates, e prossegue, mais tarde, com a festa de fantasia e bebedeira dos adultos.
Sempre achei, com Oswald de Andrade, que o Brasil incorpora o que quer da cultura americana. E, ao que parece, o País, pelo menos nas grandes cidades, está cada vez mais entusiasmado com o Halloween. Com esses projetos de lei, corre-se o risco de instituir uma festa oficial e chapa-branca, a do Saci, e o
http://txt.estado.com.br/editorias/2005/10/31/cad015.html
O Estado de S.Paulo
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