Mestres na difícil ciência de decifrar o Brasil |
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Publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo 20/07/2006 |
A Pedra do Reino foi publicado em 1971, época do milagre brasileiro, início da euforia do consumo. Em seguida vem a década de 80, dos yuppies, do individualismo e da valorização do modelo cultural americano. Neste início de século, ao contrário do esperado, a globalização provocou o fortalecimento da identidade cultural e a valorização da tradição como fonte de reinvenção e atualização das culturas. Isso facilitaria agora a recepção desse livro, cuja poética é de afirmação de identidade por meio da cultura de raiz popular?
Antunes - Desde a minha primeira tentativa de encená-lo, em 1984, eu estranhava que esse livro de estatura extraordinária, de alto teor poético, que fala das cicatrizes de um Brasil profundo e levanta questões importantes a serem discutidas, não tivesse seu valor reconhecido. Eu já falava, na época, que era o livro mais importante depois de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Por que não emerge? Mais ainda do que o livro, o personagem do Quaderna? Acho que dentro da escritura brasileira não existe outra personagem tão rica. Temos o Policarpo Quaresma, o Macunaíma, os 'detrás da veneziana' do Machado de Assis, o Diadorim. Quaderna é mais complexo, mais contraditório. Tenho essa sorte: pego um negócio e coloco o foco certo. Foi assim com Nelson e Macunaíma e acho que vai ser assim com Quaderna. Falta pouco para que esse livro seja reconhecido no patamar de seu merecimento. É só quebrar a casca do ovo. Eu gostaria muito que isso acontecesse. Não por mim, mas pela importância de Suassuna, o maior escritor brasileiro da atualidade.
Suassuna - Sempre achei que a cultura tem papel fundamental na sobrevivência de um País, mesmo quando diziam que o fator econômico era o mais importante. Talvez eu estivesse errado. Mas agora todo mundo viu que, na pretensa universalização que é a globalização, quem não se fortalece culturalmente, desaparece. Tenho impressão que agora está mais fácil ver que eu tinha razão. Às vezes as pessoas me têm como xenófobo. Isso não é verdade. Nunca me moveu e não me move qualquer hostilidade. Eu seria até um ingrato. Ninguém deve mais aos grandes escritores do que eu. Devo a Shakespeare, Goldoni e Molière, aos grandes russos, principalmente Gogol e Dostoievski, aos grandes espanhóis, principalmente Cervantes e Calderón de la Barca. No grande conceito da cultura universal cada país tem de contribuir com sua nota peculiar.
O que mudou da primeira tentativa para essa que estréia amanhã?
Suassuna - O fracasso da primeira tentativa não foi culpa só de Antunes, foi minha também. Eu pretendia escrever uma trilogia chamada A Maravilhosa Desaventura de Quaderna, o Decifrador e A Demanda Novelosa do Reino do Sertão. Como A Pedra do Reino, o segundo livro teria cinco partes, das quais eu escrevi apenas duas e publiquei no Diário de Pernambuco como folhetim. Aí peguei a primeira parte e publiquei em livro com o título Ao Sol da Onça Caetana, mas depois cheguei à conclusão que tinha cometido um erro. Quaderna mudou completamente, acabou-se a ironia, porque eu deixei que a minha história pessoal entrasse pela história e pela personalidade de Quaderna. Enquanto A Pedra é narrado por Quaderna, O Rei Degolado é narrado por Suassuna. Eu já tinha descoberto que era um erro, parei, não publiquei a segunda parte. Enquanto isso, aqui em São Paulo, Antunes pegou e resolveu somar as duas partes. Não foi culpa dele, não mandei dizer a ele que não aceitava mais aquilo.
Antunes - Tem uns burrinhos dizendo que o Ariano é reacionário porque fala de rei, de uma luta oligárquica, de coronéis. Acontece que era o pai dele, era a mãe dele. Para entender A Pedra do Reino é preciso ser dialético. Quaderna diz que é monarquista de esquerda, é muito engraçado. Apesar de não ter nada a ver com Suassuna tem tudo a ver com ele e foi isso que de certa maneira, na primeira versão, deu problema. Eu falava muito da mãe dele, do pai dele. Desta vez, brinquei um pouco só no começo. Não posso fazer A Pedra do Reino sem a História do Rei Degolado. As pessoas precisam entender a Guerra da Princesa para
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Jornal O Estado de S. Paulo
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