Justiça e novas tecnologias |
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Publicado no Site do Jornal O Estado de São Paulo de 24/08/07 |
Justiça e novas tecnologias
José Serra
Em Paulicéia Desvairada, Mário de Andrade afirma que “ninguém pode se libertar duma só vez das teorias-avós que bebeu”. Não é apenas na literatura que a tradição e o preconceito embaraçam a descoberta do que é novo, moderno e pode ser muito útil. Na prática jurídica, a tendência a conservar velhos ritos cria notória dificuldade para se aceitar toda mudança tecnológica. É este o caso, atualmente, da videoconferência. No passado, a datilografia e a estenotipia provocaram tanta controvérsia que se considerou prudente dizer no Código de Processo Penal (de 1940) que a sentença pode ser datilografada (artigo 388) e, no Código de Processo Civil (de 1973), que o uso da taquigrafia é lícito (artigo 170). Providência semelhante se justifica a propósito do interrogatório a distância.
Em nome de princípios constitucionais valiosos - o devido processo legal e a ampla defesa -, recente decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal anulou um interrogatório porque fora realizado por videoconferência, sem que o réu tivesse saído do presídio em que se encontrava. O velho Código de Processo Penal não regula nem proíbe o uso da videoconferência, que se difundiu amplamente em São Paulo, com a realização de 2.452 teleaudiências em apenas dois anos, a adesão de muitos juízes e a aceitação do Superior Tribunal de Justiça. Essa técnica também foi acolhida num projeto de lei proposto pelo senador Tasso Jereissati, para o qual a Câmara dos Deputados apresentou um substitutivo e que está pronto para ser votado, em definitivo, pelo Senado.
Defendo a aprovação desse projeto e não creio que o método seja contrário à Constituição federal nem aos direitos fundamentais. É natural que o acusado de um crime queira ser visto e escutado pelo juiz que irá julgá-lo. Isso integra a própria noção de um processo penal justo, que só merece essa qualificação quando é disciplinado e percebido como um diálogo, do qual o réu participa, com o respeito à sua condição humana e a oportunidade de ser ouvido e, deste modo, influir na decisão que afetará sua vida. Mas para isso não parece indispensável que o réu e o juiz estejam na mesma sala. Há muito tempo a tecnologia permite transmitir e receber som e imagem em tempo real, assegurando a observação de expressões faciais e de voz de quem participa do interrogatório.
A videoconferência traz para o ambiente judicial o que o telefone e a internet trouxeram para a convivência humana. Elimina o espaço e encurta o tempo. Sob fiscalização e acompanhamento do defensor, do Ministério Público e da sociedade, permite o interrogatório a distância. Também permite que o processo tenha, sem prejuízo das garantias constitucionais, uma duração menor, que o juiz multiplique sua capacidade de trabalho e que o Estado não exponha a sociedade a riscos desnecessários nem dissipe seus escassos recursos com o transporte de presos.
Não há razão para impedir esse ganho de eficiência, que tem entre seus defensores tribunais como o nosso Superior Tribunal de Justiça, a Corte Constitucional da Itália e a Corte Européia dos Direitos Humanos. Estes dois tribunais já examinaram a validade da videoconferência para o interrogatório, que é prevista na legislação italiana, e concluíram que essa técnica garante a ampla defesa e o direito ao processo justo.
Ao redigir a decisão, um dos grandes juristas italianos, Giuliano Vassali, argumenta que não tem fundamento a premissa segundo a qual somente a presença física do acusado no Fórum poderia assegurar a efetividade do seu direito de autodefesa, princípio que não pode ser confundido com as modalidades práticas pelas quais se concretiza em cada processo e cuja realização requer, apenas, que se garanta a participação pessoal e consciente do réu e meios técnicos que sejam idôneos para alcançar esse objetivo.
A Corte Européia dos Direitos Humanos recorda que o uso da videoconferência é previsto no direito internacional, como, por exemplo, na Convenção da União Européia sobre extradição judiciária em matéria penal. A videoconferência realizada em
http://www.estado.com.br/editorias/2007/08/24/opi-1.93.29.20070824.3.1.xml
Jornal O Estado de São Paulo
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