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Sexta-Feira , 02 de Maio de 2025
 
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1° Lugar - Conto
“O Brilho do Silêncio”, de Vanja Thiers Cacciatori
(E.E. Prof. Geraldo Alves Corrêa; D.E. Campinas Leste; Campinas)

O Brilho do Silêncio


A roupa que eu lavava, a roupa da madrinha, quase não via porque o brilho da água era espelho e eu via o céu. Água onde viviam muitos jacarés com gula nos meus olhos, se misturando pelo meio das folhas. Água que beijava meus pés. Água morna, calma... água que dourava o céu. O brilho daquela água lia meu pensar.
Brilho para quem eu dava minha liberdade. Vez ou outra vinha um passarinho e roçava o peito naquele brilho frondoso... e eu apreciava aquele rio, apreciava tudo aquilo esquecida da roupa, esquecida da madrinha.

Mas as folhas sempre tiveram o saber de me alertar; ouvi um barulho pesado pelas folhas verdes atrás de mim. Acudi, quase suspeitosa que fosse a madrinha chegando para me surrar pela demora. Fui virando desconfiada e dei de frente com um bruto homem quase em cima de mim. Ele se movimentava com jeito estúpido e gingo todo encenado, gingo de me assustar! Será que pensei em correr? Não sei... fiquei parada.

– Eu sou sargento! – disse com atrevimento.

Eu não conhecia a palavra. Fiquei calada. Então, sem desviar os olhos de mim, ele começou a andar ao meu redor boquejando:

– Que traseiro bom, hein, beleza? Tá vendo esta roupa? – mostrou sacudindo a farda suja, fedorenta. – Eu sou sargento!

Fiquei quieta... olhando... se eu não sabia falar, se fui criada com gente que não conversava, o que havia de fazer? Acho que ele não gostou do meu silêncio, por eu nada dizer e de um bote fui agarrada:

– Vem cá!

Fiquei olhando... ele passava a mão por lá, por cá, em mim, que só vendo!

– Não gosta de falar, beleza? – Silêncio. – É muda? – Silêncio. – Mulher que não fala também é bom.

Num repente lembrei logo da madrinha, da raiva da madrinha pela minha demora, e quis tomar rumo. Fui correr para apanhar a roupa e recebi um puxão pelo braço que até balancei desengonçada.

– Vem aqui, bitela, se está pensando que vai escapulir, não adianta.

Enquanto ele falava, soprava um hálito morno bem junto da minha orelha e eu ali, mantida segura, presa, grudada naquele peito duro por aquelas mãos fortes; olha que eu nunca pensara que peito de homem fosse duro daquele jeito.

Ele apertava o meu corpo, lambia, apertava, esfregava. Nossa! Passava que passava aquelas mãos duras e eu respirava a custo o cheiro do seu suor quente, ácido; cheiro que ainda sinto. Então, foi se afastando, ao mesmo tempo em que me olhava, assim, como se aprecia um doce. Foi aí que vi aqueles olhos dele.Tinham um brilho... cuidei que fosse o mesmo brilho da água. Olhei para a água, olhei para os seus olhos. Não, não era o mesmo brilho, era brilho que eu não dava nome, brilho que os meus olhos não contavam o que era.

Enquanto me encarava, boquejava um palavreado que não tinha fim. No meio daquela prosa toda, de trás para frente, de frente para trás, passou a mão pelo meu braço e foi me levando pelo meio das folhas. Arrastava-me de judiar, até que jogou as minhas costas num barranco e ficou na minha frente pondo aquele olhar brilhante em cima do meu rosto. Olhar que soltava faísca; era como muitos raios, muitos estiletes cravando-se na minha pele. Era o brilho do seu olhar, era o brilho da cobiça e eu não sabia.

Logo deu em mim dali fugir, mas para onde? Para a água do rio? A água era dos jacarés que também me cobiçavam. Para a casa da madrinha? Senti medo. Medo da madrinha que ia me surrar, medo daquele homem parado na minha frente, desabotoando as calças, e eu nem sabia que aquilo era um homem. Não pensava que via um homem, pois se nunca tinha visto gente; sempre vivi só mais a madrinha pelos fundos dos matos, onde ninguém se via.

E foi assim, ele veio por cima rasgando a roupa que cobria o meu corpo e foi um estrago; ia e voltava, ia e voltava por cima de mim. Depois fui virada num solavanco e ele veio pelas costas achatando o meu corpo contra o barranco. Eu era puxada para trás e levada para frente. Meu rosto ardia de tanto ser esfregado pelo barranco; a cintura era espremida com tanta força que pensei que fosse sair as minhas tripas pela boca.

Corria água dos meus olhos, corria muita água dos meus olhos. Era dor que não era vida. Era dor de morte. Era luto e eu não tinha um gemido para aquela dor. Era dor e sangue. Muito sangue tingindo as folhas, as minhas folhas verdes.

Sentia a cabeça inchada e uma dormência no corpo... eu já não era nada. Não era leve, não era pesada, não era vida, não era morte.

Despertei assustada com a água fria espatifando-se no meu rosto, ele a jogara e resmungando foi-se embora dali. Fiquei só. Correu tempo... correu muito tempo até que cuidei de me levar para a beira do rio e dar o meu sangue para a água.

Sentada via a água passando... passando... não me mexia. Queria ver o brilho da água e não conseguia. Só um brilho estava diante dos meus olhos, o brilho daqueles olhos negros saltados. O sofrimento era do corpo, sofrimento mudo. Naquela hora o silêncio era o todo, era o necessário, era o meu brilho; o silêncio!

Veio o medo, medo de não voltar, de não reagir, mas a força foi suprema. A força grande veio. Juntei as roupas da madrinha e corri, corri muito. Quando cheguei perto da casa ouvi a zoada da madrinha e fui chegando devagarzinho.

– Aquela menina é uma peste, além de comer terra, não serve mais para nada, saiu para lavar roupa e até agora não apareceu, mas senta aí, Francisco, que eu vou caçar aquela menina.- Abadia! – gritando – Abadia vem aqui, trem.

Fiquei encolhida no meio do macaubal que tinha perto da casa. Madrinha veio de lá com uma força de desafiar o vento. Agarrou pela orelha e foi levando-me aos empurrões até dentro da casa. Num safanão fez com que eu quase caísse por cima de um homem sentado no jirau perto da porta:

– Aqui Francisco, é esta a menina.

Os mesmos olhos eu vi, a mesma roupa, era ele, era ele... faltou-me o fôlego, a força foi se escapando e minhas pernas cederam; rápida, a madrinha socorreu balançando-me pelo braço –Toma sentido, menina. Não se agüenta nas pernas, não? Arruma estes trapos, está toda rasgada. Este aí é o Francisco, o teu pai. E surgiu o silêncio novamente, com o seu brilho, novamente.

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