2° Lugar - Conto
“Por que Rubins?”, de Roberto Francisco
(E.E. Dona Ana Rosa de Araújo; D.E. Centro-Oeste; São Paulo)
Por que Rubins?
Olhei uma última vez para o teto onde um ventilador girava na tentativa de cortar os últimos liames que me prendiam à vida. Eu me afogava em um mar vermelho. Tudo era vermelho. O teto, os sorrisos escancarados de dentes estragados. Tudo tinha a cor do sangue que me cobria os olhos. E pensar que eu aqui entrara apenas para um descanso na longa viagem que fazia. Tinha saído ao encontro do amor que me fugira. Alguém (quem?) me disse que ela estava lá. Era longe o lá. Aqui onde estou agora é pouco mais da metade do caminho, mas o encontro com ela jamais acontecerá. Somos almas paralelas e o infinito onde poderíamos nos encontrar está além do próprio infinito.
O calor era forte demais naquela tarde de verão vermelho. Por entre as árvores, nas laterais da estrada, o sol coriscava como fotogramas rodando em um projetor. À tela - minha mente - passava o filme mais insólito da minha vida. Começara com amor, com beijos, com suor. No carro eu enxugava o suor com o dorso da mão.
Quantas vezes, no calor da paixão, ela me refrescava com sua língua tépida provocando-me arrepios refrescantes. Quantas vezes trocamos suores. Quando seu sangue fluiu na primeira tarde quente em que nos amamos, minhas veias se dilataram todas e eu morri no prazer da desfloração. Imenso tremor. Nos corpos e no leito.
Da cabeceira da cama, de um vaso, como em bênção, desfloraram rosas vermelhas. Sinto agora o mesmo tremor, o mesmo calor, a mesma dor. Há sangue, mas não há amor. Deus, que calor! Um pouco de sombra e eu estaria refeito para continuar pela estrada que me levaria até ela. Por mais não sei quanto tempo dirigi mecanicamente em meio do nada. Pisquei os olhos várias vezes contraindo as pálpebras com força para afastar o cansaço e manter-me acordado. Por quanto tempo eu dirigira sem parar? O relógio que eu teimava em manter no pulso não marcava as horas, parado desde aquela fatídica briga que tivemos. Foi nesse dia que seu olhar ficou frio, sem expressão, congelado por profunda dor enquanto vestia aquele vestido vermelho tão fino, quase transparente. Não por querer, ao sair, pisou com seu salto fino, no relógio que ficara no chão ao lado da cama. Foi assim que ele marcou para sempre aquele momento estancando o tempo. A porta bateu com força. O som ficou ecoando em mim. Eu fiquei ali, calado, mudo e nu, estirado na cama. Não movi um dedo. Tremi os lábios e uma gota quente de dor escorreu de meus olhos. Foi a primeira vez que chorei. Por um nada – que tolo eu fui, santo Deus – ela se foi de mim. Por que não corri atrás? Por que não a segurei pelo braço e não lhe pedi perdão? Fechei os olhos com força. Ao abri-los, um restaurante de estrada apareceu à minha frente. Uma pausa na busca. Um bom banho e continuar até o destino. Parada Irmãs Rubins. Estacionei à frente. Nenhum carro. Se estivesse fechado, dormiria ali mesmo. Havia um quê de abandono no ar.
Desci do carro e nem o tranquei. Empurrei a porta e ela se abriu fazendo um tilim. A primeira vez que eu a vi foi assim. Uma festa. Chata, mas obrigatória. Entre vozerios, vista turvada por drinques e fumaça, a porta se abriu tilintando, e eu, de longe, como fazendo um zoom com o olhar, a vi em close. Era ela. Ela agora estava lá. Ai, meu Deus! Ela agora estava lá (onde?) tão longe, mas gravada na memória, no cheiro, no tato... Principalmente no tato. E na memória do tato. Ah, o significado da palavra saudade! Tão nostálgico, tão forte, tão doído. Saímos da festa.
Rodamos de carro por horas e fomos a um bar isolado no começo da estrada que nos levaria ao mar onde decidíramos ir para sacramentar nosso encontro. Eterno.
Talvez! Entrei. Parecia realmente abandonado. Poucas mesas. Vazias. Copos emborcados. Cortina de contas balançando pela fuga de um gato que se assustou com a minha entrada. Um gato cinza escuro, olhos cor mel. Fiquei um longo tempo parado no meio do salão. Tudo era vazio. O salão, o olhar e eu. Longo ou breve, o tempo foi quebrado pelo rumor das contas da cortina. Entre as contas - mão, faltando um dedo, apoiada no batente verde - uma mulher em quimono de seda roxo com berrantes flores amarelas, como sua desgrenhada cabeleira de um amarelo tão falso quanto o sorriso com que me recebera. Que vai querer, moço?
Descansar um pouco. E tomar um banho, se possível. Pareceu-me que ela arregalara os olhos. Pois não. Sente-se. E virou-se para dentro anunciando: “Temos cliente!” Que vai querer?, eu perguntei a ela naquele restaurante a caminho do mar.
Comemos ostras regadas com champanhe. Depois o mar, à noite enluarada e quente. Andamos de mãos dadas contornando a orla. Apenas nos beijamos àquela noite, e ficamos horas abraçados, sentados na areia, olhando a lua que dançava tremulante na água. Era uma paz que parecia sem fim, até aquela briga besta que a arrancou de mim. Aqueles imensos olhos verdes! Eu ainda os sentia. A cortina de contas rumorejou de novo e ela se foi mais uma vez. Era outra a mulher agora. Tão estranha quanto a primeira. Vestida num cafetã vermelho lembrava uma cafetina de cabelos ruivos longos espalhados pelos ombros. Sorriu para mim mostrando os dentes enegrecidos pelo cigarro que tinha entre os dedos. Vem tão pouca gente aqui – ela falou levando o cigarro à boca numa tragada tão longa que lhe afinou a face e ressaltou a profunda cicatriz – minha irmã, se o senhor não se importar, quer vê-lo. Vivemos um tanto quanto isoladas por aqui. Não respondi. Não quer tomar um banho antes? Essa proposta me animou um pouco mais. Acho até que sorri, pois ela fez um gesto para que eu atravessasse aquela cortina cujas contas rumorejaram às minhas costas. Dei um passo e parei. Um arrepio percorreu minha espinha. O mesmo arrepio que senti ao perceber que ela não voltaria mais. Era uma sala penumbrada. Longas cortinas vermelhas cobriam as janelas do alto ao chão.
Alguns aparelhinhos elétricos de cor violácea, para eletrocutar moscas desavisadas como eu, pendurados no teto entre grandes nacos de carne a secar envoltas em sacos de linho. Marcas de sangue escuro, manchavam o tecido exalando um cheiro acrimonioso. De tempos em tempos, aquele ruidinho que marcava a eletrocussão das pobres moscas. Crrisch. Crrisch. Ao canto, um grande anjo talhado em madeira. A seus pés, o gato, como guardião a me olhar com estranheza. Meus olhos se fixaram no gato. E no anjo. Aquele anjo! Você parece um anjo com esse cabelinho louro encaracolado, ela me dizia enquanto me beijava o pescoço e usava meu cabelo como anéis onde enfiava os dedos, a mão inteira arranhando suavemente minha nuca. Você é todo caracóis, aqui e lá – e descia a outra mão até aninhar-se em outros cabelos anelados. Meu anjo! Sua voz era tão suave, macia, morna... Crrisch! Você parece um querubim! Agora a voz era rouca e velha. A mulher que me falava era velha. A mais velha das três. Estava sentada, nua, em uma poltrona de veludo vermelho, as pernas esticadas e apoiadas em uma banqueta também forrada de vermelho. Um pano branco apenas, cobria sua gruta arquivelha. Era gorda, flácida, os seios escorrendo para os lados como duas bolsas semivazias.
Suas pernas brilhavam inchadas. Ela era de um branco marmóreo. Sente-se aqui, ela falou apontando para um banco tosco que estava ao seu lado. Constrangido, desviei o olhar para o gato que parou imediatamente de se lamber, e encarou-me com desconfiança. Merda! Por que pisei no freio e não no acelerador quando vi aquela maldita placa? Estaria distante, suado, mas longe dessas três velhas shakespearianas. O que é que eu estava fazendo ali? Crrisch, crrisch. O ruído desviou-me o olhar do gato e enojei-me mais. Aquela velha coçava (ou friccionava?) a sua caverna escura por debaixo do pano branco e olhava com os mesmos olhos do gato. Senti no ar um cheiro pútrido. Velha asquerosa! De repente, um gemido alto que virou um longo grito de dor, lancinante. Assustei-me e recuei num pulo. Ela se retorcia como galhos espancados por um vendaval. Se aquilo fosse gozo ela era um vulcão despejando lava. Queima! Dói! Me ajudem, suas vacas! As outras duas, incontinenti, entraram com bacia e panos. Ajoelharam-se, uma de cada lado, e foram lhe banhando as pernas, torcendo e retorcendo panos úmidos. É sempre assim. A urina lhe sai pelas pernas. E queima. E vai apodrecendo até os dedos se afundar na carne morta. Pensei em fugir. A do quimono ergueu a cabeça e disse: “Por que não aproveita e toma o seu banho? É por ali.” E apontou-me uma porta em arco que eu rapidamente atravessei, e com rapidez maior, fechei atrás de mim, mesmo que não tivesse tranca. Por alguns instantes, encostado à porta, fiquei comigo mesmo. Aquela doença deveria ser um castigo. Olhei para a banheira, desconfiado, com água fumegante. O asseio daquelas velhas não parecia ser o melhor, mas o cansaço e a tepidez da água me convidavam para uma imersão uterina. Talvez ali, estivesse a salvo, como imerso e seguro estava antes do nascimento. Despi-me e afundei com aprazimento. Elas estavam sendo gentis. Havia velas aromáticas à borda da banheira. Um odor suave. Recostei a cabeça deixando a água bater-me no queixo e cerrei os olhos. Ah, Mariana! Aquele banho! Seus pés e seus dedos brincando entre minhas pernas... Meu dedão te penetrando... O cheiro dos óleos aromáticos, o teu cheiro, o cheiro do amor. A tua lembrança, a água tépida, intumescia o cajado da minha masculinidade. Você era o covil onde nossas feras se embatiam. Depois o torpor. Depois a vertigem. Depois o sono.
Acho que adormeci... Ne me quite pas, il faut oublier… A voz vinha distante como parte do sonho. E foi ela que me despertou. Pour couvrir ton corps d’or et de lumière… Gosto tanto de Maysa, dizia Mariana que cantava com ela... Je ne veux plus pleurer, je ne veux plus parler… Minhas roupas!? Vacas! Devo ter fugido junto às lembranças e aquelas harpias me roubado as roupas. No lugar delas, um roupão que tinha sido felpudo. O que elas estavam querendo? Deviam há muito estar sem homens. Se pensavam numa noite de orgia... Saí. Perto da velha que apodrecia estava uma mesa posta. Frutas, terrinas de louça, talheres de prata, taças e garrafas de vinho Lacrima Christi de um rubi brilhante e postas de carne em vinhas-d’alhos sobre uma toalha de alvo linho. Não pude xingá-las. Lavamos suas roupas, estavam muito suadas. ...Le rouge et le noir. Crrisch. Sente-se. Regina gosta de sua companhia. Estamos sempre tão sós. Regina era a velha nua de perna sempre molhada de urina. Aonde Mariana me levara, meu Deus! Ne me quite pas. Tira essa mulher da vitrola, disse a velha que morria pelas pernas, e acrescentou: “Vamos comer, querubim?” Maysa calou-se. Mariana calara-se. Eu sou Branca e ela é Rosa, disse a ruiva rindo como criança envergonhada. Branca e Rosa. Murchas e desfolhadas. Haviam perdido o vigor, a frescura, a beleza e a energia. Haviam-se esvaziado. Como eu. E eu sou Regina, la regina degli fiori. Tomei de um gole uma taça de vinho e com ela engoli o riso. Meu nome era Franco, mas inventei. Menti. E errei na mentira. Orestes! Regina deu um grito, não sei se de dor ou de ódio.
Crrisch, crrisch. Branca e Rosa se encolheram. Uma espedaçou o cacho de uvas entre os dedos, e a outra estilhaçou a taça de cristal espalhando o vinho por sobre o branco da toalha. Maldição, eu sabia que o demônio voltava, gritava a velha nua apertando o peito, como se enfartasse. Seu grito ecoava. O vinho se espalhava pela toalha. Crrisch. O relógio parado. Mariana me dando as costas. O som do salto no mostrador. O tempo parado. Como eu. Inerte diante de três velhas que me olhavam com olhos avermelhados. Eram olhos de lobo brilhando no escuro. Olhos incandescidos. Ah, os olhos daquele gato! Acho que pouco importava a minha mentira. Pouco importava se Orestes, Franco, Clóvis, Júlio ou César. Igual a todos os outros. Todos um verme! Enchi e sorvi mais uma taça de vinho. Ele, o verme, nos amou. A nós três de uma só vez. Nós o amamos. Mais que ele a nós. Enquanto falava, Regina chorava lágrimas putrefatas que lhe escorriam pelas pernas em decomposição. Ela chorava pelas pernas. Os olhos secos fixos em mim. As outras duas, hirtas, bocas abertas como gárgulas de catedral, desgastadas pelo tempo, engoliam uivos. Ele nos destruiu. Tentamos uma destruir a outra. O corte no rosto de Branca foi feito por mim, gritou Regina. Com a navalha dele. A mão sem dedinho de Rosa foi Branca quem tirou com o facão da cozinha. A mim, ambas cortaram o jarrete. Fiquei no chão por dias no meio do sangue. Tomei gosto por sangue. Branca ergueu-se e com fúria completou: “Antes que uma acabasse com a outra fizemos um pacto”, e berrou como se tivesse voltado no tempo: “Ele é quem deve morrer!” Crrisch! Crrisch! Miaau! O gato foi chutado contra o anjo e atrás dele se escondeu. Meu Deus, Mariana, em que inferno você me levou? Seu rosto, começou a ficar mais distante. Eu queria apenas te pedir perdão pela briga ridícula que nem sei mais porquê foi. Era só. Desci aos subterrâneos. Encontrei as almas dos mortos. Nessa farândola dantesca, Mariana virou Beatriz.
“Que fortuna ou que destino
Antes da morte aqui te há conduzido”
Nenhum homem mais vai entrar em nossas vidas – gritou Rosa – e se entrar, não sai. Ainda tive tempo de encher mais uma taça de vinho antes que ela, derrubasse tudo puxando a toalha que se ergueu como asas de um anjo mortífero e se enroscou no ventilador onde ficou girando qual fantasma enfurecido. Levei a taça à boca e bebi aquelas lágrimas de Cristo. Vozes se misturavam. Quem falava o quê? E nós o embebedamos. Deus meu, quanto eu já bebi? Quando ele caiu, bêbado, inconsciente, lhe rasgamos a roupa, e o colocamos na mesa. Pusemos um Wagner na vitrola. Estou me sentindo tonto. A sala roda como as pás do ventilador. Agora Wagner toca alto. A sala roda, as velhas rodam, o gato roda. Eu rodo. Estou zonzo, zonzo... Mariana. Os facões no ar com fúria. Morre verme infame! Morre desprezível, pulha, torpe. Que torpor, Mariana! E nós o retalhamos. Comemos dele as partes mais macias e salgamos as outras. Que prazer! Que orgia! Que clímax!
Mariana, parece que estou caindo em um poço fundo rodopiando em círculos cada vez mais estreitos. Girando, girando, e caindo, caindo, caindo... E tudo se apagou...
... Crrisch. Tudo em branco. O vazio. O nada. Quanto tempo fiquei sem sentidos?
O vinho! Malditas! Três velhas decrépitas me dominaram. A debilidade mais forte que a juventude. Vozes... Vozes... Abri os olhos. O ventilador ainda girava. Eu na mesa, nu, entre as taças de vinho que elas bebiam. Que droga haviam usado? Eu ouvia, via, mas não me movia. Só o coração batia. E os pensamentos! No teto os pacotes de pano envolvendo pedaços de carne. Carne? Pedaços de homens.
Quantos homens, meu Deus! Parada Irmãs Rubins! Quantos haviam parado, para sempre. Aquelas velhas! Nunca mais vou te ver, minha Mariana-Beatriz. Elas comiam um pedaço suculento de carne ainda ensangüentada. Que parte de meu corpo lhes servia de banquete? O gato – maldito gato – pulou na mesa perto do meu rosto. Na boca um pedaço de mim. O gato me mostrava que já não era mais um homem. O que era ser homem? Músculos e espadas? Semens e lutas? É fácil ser homem. É difícil ser gente. Ser homem é amar! O quê? Não importa. Só amar.
Amar. Acho que tinha o peito aberto, a mão de Rosa apertava meu coração. Lá fora o sol começa a se por. Hei, olha que lindo o por do Sol! E abriram as cortinas.
Regina ergueu-se e foi à janela arrastando lágrimas pelo chão. Tudo foi ficando avermelhado. As caras velhas se avermelhavam. O anjo, o gato, o teto. A toalha de linho branco vermelhejava. Meus olhos enxergavam vermelho. Sangue liquefeito em lágrimas. Lágrimas. O único sentimento visível em mim. Sem dor. Lágrimas por Mariana, pela vida perdida pelo perdido amor. Lacrima Christi. Vinho. Cor de rubi. Rubins. Por que Rubins? Por que? A mente vive. Eu posso pensar. Pensar e lacrimar. Só. Ver, via. Vermelho. Ouvir, ouvia. Longe... Falas distorcidas, gargalhadas. Imagens que se nublavam. Toldava-se-me a vista. Turvo o vinho nas taças erguidas. Mãos vermelhas. O brilho dos facões era opaco. Avermelhado.
Mariana fugia cada vez mais. Seu rosto uma foto em sépia esmaecida. Wagner ainda estava lá. Longe. Em surdina. Meu solilóquio somático. Fecham-se as cortinas. Sonolência. Sopor. O vermelho ficando escuro. Rubiginoso. Está escurecendo tão rápido! Vermelho e negro. Negror avermelhado. Cada vez mais escuro. Tão escuro... Escuro... Es... cu... ro. Crrisch!
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