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Boa noite
Sexta-Feira , 02 de Maio de 2025
 
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3° Lugar - Conto
“Libertação”, de Êrika Alice Furtwaengler
(E.E. Prof. Oswaldo Ranazzi; D.E. Sto. Anastácio; Sto. Anastácio)

Libertação


A casa, grande e silenciosa! Pouca gente para povoar seu espaço. Cantos, centros das salas desamparados, corredor deserto, até o quintal solitário, tudo pedia presença, palpitação. Os pais moviam-se ali, lentos e calados, como aranhas cumprindo suas teias; os gestos envelhecidos, só depois de muito tempo, à força de se acumularem, produziam um leve tremor nas cortinas e nas folhas frágeis de algumas plantas, como uma brisa insignificante passando por engano no meio da sala imperturbável.

Agora, os três ali instalados cada um dentro de sua própria vida, Ana precisava preencher o vazio interior. O espaço que seu irmão deixara, desde que fora procurar emprego e morar em São Paulo, passou a incomodar. Sentiam muita falta dele que trabalhara em um escritório, pertinho do casarão. Saía cedo para o serviço, vinha para o almoço, outro café, voltava a casa depois do expediente, tomava banho, jantava, saía para a escola. O ir-e-vir o presentificava. Durante o dia, cada vez que abria a porta de entrada, entrava com ele a vibração e o calor da rua, o breve tinido da maçaneta antecedia a sua voz que, com o som de seus passos, animava tudo. O gato saía de seu ninho e ia se esfregar na perna do irmão, ronronando.

- Cheguei!

Esse brado reunia todos na cozinha. Com a partida do irmão, os três tiveram de se refazer. O rapaz vinha agora esporadicamente, por uns dias, tudo parecia voltar a ser como antes. E então ele partia novamente e todos ficavam esperando que a porta da entrada se abrisse e sua voz ecoasse até o fundo do quintal. Sem ele, tudo parecia muito desolado, o quarto de Ana parecia vazio e era lá que ela passava boa parte do tempo.

Certo dia ela pensou que uma penteadeira ficaria bem, ali ao lado de sua cama. Seria companhia, não só para si, mas para o antigo guarda-roupa e para a cama turca solteira, desconsoladamente estendida junto a uma parede. Então comprou a penteadeira e isso foi mais que um começo.

A penteadeira cresceu de início para dentro de si mesma. Justificava a compra de novos objetos e calçados e esses, juntos aos já existentes, formaram uma quantidade maior do que comportava a prateleira do móvel. Ana colocou nela duas prateleiras extras que não foram suficientes, porque tudo aumentou de novo. Ela concluiu que precisava arranjar novo lugar para seus calçados. Então levou seus chinelos e sandálias para baixo da mesinha, no banheiro, os quais logo se misturaram e se confundiram com chinelos e sapatos do pai, e, enfim, parecia que aqueles calçados se multiplicavam estranhamente e se atrapalhavam tanto, até que os chinelos e sapatos do pai se retiraram silenciosos para baixo da cama no quartinho onde ele morava à noite, desde que o seu sono não se entendia mais com o sono da mãe. Ele roncava, não a deixava dormir, ela lhe dava cotoveladas que o acordavam, e durante a noite inteira um despertava o outro em revezada vigília, de que traziam as marcas para a claridade da manhã na forma de mau humor e olhos fundos.

Porque o rapaz partira, cada um pôde ocupar um quarto e fazer dele seu casulo. Quando se encontravam no labirinto da casa, era como se viessem de longe, mas nada havia de novo e nem eram necessárias muitas palavras entre eles, e cada vez conversavam menos.

Um dia, Ana comprou o que chamavam mala de enxoval. Ao longo do tempo juntara roupa de cama, mesa, banho, aos ímpetos de fugazes relacionamentos amorosos e até de um noivado, o apogeu, mas o casamento fracassara. Começou a recolher as peças espalhadas pela casa, um pouco em uma gaveta, peças ali em outra cômoda, outras lá, outras...outras... outras... No início o móvel parecia tão alto! À medida que as peças se foram acomodando no fundo, e o fundo foi subindo, tornou-se pequeno, parte do dote, também aumentado pela provocação do espaço disponível, ficou fora e Ana teve de arrumar toalhas no velho baú da mãe, de onde algumas peças foram expulsas. As roupas antigas do enxoval materno vieram à luz trazer a cor melancólica dos tempos e o cheiro de naftalina, e foram colocadas em uso porque não tinham como voltar à mala ocupada, cessando espera e repouso semi-seculares. Assim a casa toda começava a palpitar com a atividade de objetos revelados.

Quando essa agitação diminuiu um pouco, Ana queria uma estante para seus livros, cuja quantidade crescera secretamente. A cada uma de suas viagens, voltava carregando um ou mais volumes. Encomendou ao vizinho marceneiro uma estante com divisórias para televisão, aparelho de som, várias gavetas, muitas prateleiras para livros. Essa estante que engoliria tudo espalhado pela casa era uma das maravilhas da decoração!

Enquanto se executava a sua construção, os livros foram se empilhando impacientemente sobre as mesas, as cômodas, a penteadeira e dentro de uma, duas, três malas surgidas de cima de guarda-roupas e de baixo de camas. Era uma estranha convocação: sobre e sob móveis, em todos os aposentos, até no banheiro e na cozinha a vista recolhia livros.

Foi um alívio quando vieram entregar a estante em sua casa, desmembrada em quatro partes. Montada, ela ocupou quase toda a extensão de uma longa parede da sala ampla, que, muda e imóvel observava com severidade a invasão. Parecera tão grande ao chegar e, no entanto, decorrido menos de um ano, foi necessário aumentar uma prateleira de extremidade a extremidade, e por pouco os andares não se foram sucedendo até o teto, o que exigiria a instalação de uma escada. Ana preferiu comprar outra estante, menor, com portas envidraçadas corrediças, e se acalmou um pouco.

Um dia chegaram pessoas conhecidas, de fora, e lhe ofereceram a biblioteca de um falecido inglês que há muitos anos morara no lugarejo, lendo muito em sua própria língua, para se conformar com o exílio. Aqueles conhecidos haviam comprado a casa que ficara com a viúva. Os livros vieram junto com a casa, mas o casal de conhecidos não os queria e logo pensaram em Ana que sabia inglês e dava aulas em duas escolas. Assim ficariam livres do transtorno, com a consciência tranqüila porque não ousavam jogar fora ou queimar bens de estimação do finado e se arriscar a que pesadelos lhes cobrassem por atos tão incorretos.

Foi assim que ela veio a herdar muitas obras de literatura e outros manuais diversos, e a nova estante ficou simplesmente abarrotada.Tudo acomodado, correram-se as portas envidraçadas e o espaço aqui fora ficava a espiar as lombadas apertadas umas contra outras, lá dentro, infelizes, abandonadas, órfãs do carinhoso leitor britânico. Ana nunca mais pôde tocá-los, abrir as folhas escurecidas e frágeis. Ali ficaram os livros, depois de espanados e limpos, dormindo no interior da estante, seu túmulo, ao abrigo de sons e do pó. Outras coisas a chamavam.

Entrementes, o pai ganhou algumas mudas de orquídeas e começou modestamente cuidando delas. Passava os dias no quintal, e trabalhava em uma pequena mesa de madeira. Ali havia um velho moedor de café, em que moía, para adubar as plantas, esterco seco de alguns frangos que a mãe de Ana criava num corredorzinho entre um sobrado e o muro. Ele começou a ler literatura especializada, artigos em jornais, revistas, e seu interesse pelas orquídeas cresceu. Aprendeu a classificar as plantas. Passou a receber folhetos ilustradas de Rio Claro, e foi mais longe, a outros Estados. Vinham livretos de Petrópolis e Corupá. Fez encomendas a orquidários, num empolgamento incontrolável.

Um dia, foram ela e o pai a uma cidade próxima onde havia uma olaria, encomendar potes de vários tamanhos para as orquídeas. O fusquinha, que ganhou um bagageiro, aceitou a gloriosa carga, os vasos se encaixaram como puderam uns nos outros, os menores dentro dos maiores, formando troncos de pirâmides, acomodados ao longo do banco traseiro e no bagageiro que se desincumbia da primeira grave tarefa. Em casa, os potes foram descarregados sob o olhar reprovador da mãe.

O gato que fazia companhia ao velho na lida com as plantas esticava-se nas pernas traseiras, dava mijadinhas nos vasos, pulava sobre as prateleiras montadas sob a parreira. Freqüentemente algum pote ia para o chão. Com os cacos, o pai preparava o fundo de outros vasos. Foi necessário muito xaxim para acolchoar os potes. Lá fora virou o domínio quase absoluto do velho, movendo-se como sombra, em seu avental verde de jardineiro, entre as plantas.

A mãe circulava pelo quintal tomado pelos vegetais, pelos aposentos tomados por móveis, livros, tanta coisa, abanava a cabeça desaprovando tudo, impotente para reagir. Apenas suspirava:

- Vocês estão loucos.

Na grande sala havia quadros nas paredes, trazidos para o casamento principalmente pelo pai. A mãe acrescentara uma pequena aquarela à galeria, no início da vida conjugal. Ana e o irmão ainda eram pequenos, quando pela cidade passou um circo. Um dos integrantes circulou pelas residências da cidade, oferecendo telas pintadas a óleo, que ele mesmo produzia. A mãe tinha uma velha fotografia do sítio onde nascera. Perguntou se o artista reproduziria a foto em tela. Sim. Uma semana depois, lá estava o quadro pronto, tão bonito que ganhou uma larga moldura dourada e era o mais vistoso objeto artístico no salão.

Ana compartilhava esse gosto familiar. Encheu paredes com quadros, algumas telas originais adquiridas na Praça da República, na capital, e algumas boas reproduções de telas famosas. Havia o bom trabalho de espaná-los, limpar com cuidado a poeira acumulada nas costas dos quadros contra a parede.

O piso reclamou da atenção às paredes. Surgiram tapetes, que amaciavam os passos, acariciavam pés descalços. Era trabalhoso e demorado o cuidado com eles. Exigiam ser aspirados, retirados, estendidos num cano de ferro suspenso entre beirais de janela e a escada portátil, batidos, lavados, deixados fora ao sol e ar para respirarem.

Quando o velho pai morreu, houve uma disputa feroz e surda entre os móveis e objetos acumulados na grande sala e a multidão de conhecidos e curiosos que se revezava no velório. Nas horas de mais concentrada vigília, o rumor das vozes e o calor dos corpos pairava entre as cabeças e o forro, como pesada nuvem. As pessoas sentiam-se incomodadas com tanta coisa no salão, as tantas coisas sentiam-se incomodadas com tantas pessoas ali, o corpo do velho estendido no centro sentia-se incomodado com o ajuntamento de tudo, mas não protestava. Quase não exalou cheiro, de limpo. Antes de se fechar a tampa do caixão, a mãe recolheu todas as orquídeas lá de fora e as colocou sobre o corpo.

Depois que esse episódio terminou e ficaram somente ela, a mãe e o esquivo gato, parecia que tudo estava quase igual a antes. Não era assim. O tempo passou para mostrar a Ana que as coisas estavam impondo demais suas presenças. Quando fazia muito calor, a madeira dos móveis estalava em protesto, as molduras se retorciam nas paredes, os quadros pendiam tortos; portas de armários se abriam sozinhas, parece que vinha deles uma respiração opressa; algum tinido de vidros doía nos ouvidos, um objeto qualquer caía inexplicavelmente ao chão, a figura que a olhava do espelho no fundo da cristaleira, assustada e pálida entre taças de cristal e xícaras de porcelana não era a sua imagem; gavetas se recusavam a abrir, portas se recusavam a fechar; os tapetes arranhavam seus pés descalços, ela tropeçava em suas dobras e quase caía; as cortinas a impediam de abrir as janelas, tinha de lutar com as pregas e franzidos dos teimosos e envolventes tecidos, para deixar entrar luz e ar.

Sua mãe envelhecera pouco por fora. O rosto continuava liso, brilhante, rosado, sem rugas fundas. Não ficara sozinha, como temera algumas vezes, Ana não casara, estava com ela e envelhecendo também. A mãe sentia alguma pena da filha, assim só. O filho, em São Paulo, casara, tivera filhos, fizera visitas sozinho ou com a família, rápidas, cada vez mais espaçadas, havia tanto tempo que não aparecia, era quase um estranho! E o gato, afinal, desapareceu. A mãe reclamava:

- Para que eu quero viver mais? Estou doente, só dou trabalho a você. Você fica livre e pode ser feliz com alguém que logo vai achar! Ana quase sentia ódio da mãe que falava assim e queria partir, depois de ter ocupado tanto a sua vida. Quem lhe restaria? Nem o gato!

Parou de adquirir coisas, não tinha onde colocar mais nada, não sabia o que fazer com o que juntara, não sabia nem desfazer-se do excesso. Dedicou-se o quanto pôde à velha mãe, mas não pôde retê-la.

Quando a mãe se foi e ela voltou do cemitério para casa, pensava que fora a última perda. Estava enganada. Quis abrir a porta do casarão, a chave se recusou a rodar. Irritada, insistiu duas, três vezes, tirando e recolocando a chave no olho da fechadura. Teria de procurar um chaveiro, logo nessa hora? Tentou novamente. A chave rodou falsa, duas vezes, não abriu. Se a chave tinha seus caprichos, ela tinha persistência. Iria procurar um chaveiro, mas só no dia seguinte. Respirou fundo, encaixou com calma e até com carinho a chave no orifício. Abriu. Avançou um passo, parou. Sentiu dentro tanta hostilidade e rancor que teve de recuar. Apertou a bolsa contra o peito, olhando tudo que a estranhava e que lhe era subitamente estranho. Ela era uma intrusa! Seu último olhar foi frágil e impotente para enfrentar tudo que a encarava. Fechou os olhos, recuou, puxou a porta. Abriu os olhos na rua que entardecia, a chave trancou a porta com suavidade, tirou-a do orifício, passou-a para dentro, por baixo da porta, virou-se e, enfim liberta, partiu para novas buscas.

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