4° Lugar - Conto
“Um peixe chamado Pai”, de Virgínia Aparecida de Oliveira
(E.E. Aurora Scodro Groff; D.E. Capivari; Indaiatuba)
Um peixe chamado Pai
Pai costumava sair bem cedinho com as tralhas todas: a massinha, a massona, quirera, ferramentas de pegar o peixe pra não machucar o dedo, sapatão velho, roupa já suja, o chapéu do padrinho, os feixes de varas bem ensebadas e amarradas, mais a cestinha de comida.
Mãe levantava mais cedo que Pai. Preparava a comida: cuscuz de sardinha, arroz, pão, café bem forte, mandioca cozida, virado de feijão e torresmo. Tudo do jeito que Pai gostava.
Pai sabia que voltava com o samburá cheio, por isso levava dois desses sacos para pôr peixe pescado.
Eu ficava bem acordada, espiando atrás da porta a conversa dos dois. Mãe sempre choramingava antes de Pai sair e ele, sem se importar, de cigarro na boca, amarrava firme todas as coisas. Um dia, não fez laço forte e caiu o cuscuz da cesta. Mãe tomou tanto xingo... Mãe sempre tomava xingo, antes e depois de Pai pescar.
Pai pescava! Era o maior pescador do mundo!!!
A perua Kombi do Seu Camarguinho vinha cheia de outros pais, mas o meu era o mais importante porque era o primeiro pescador da equipe. O que Ele decidia estava certo. Lugar da pesca, hora de pescar, como proceder com as varas, as iscas... Era Ele também quem providenciava o fogaréu para espantar os pernilongos da beira do rio. Pai ficava dois , três ou dez dias na beira do rio. Tantos rios! Eu gostava de ouvir que tinha ido pescar no Mogi-Mirim, no Mirim, porque a palavra soava tão bem aos meus ouvidos de criança tupi, porém o meu preferido era o Paranapanema, o rio de onde Pai trazia os mais graúdos lambaris, os de rabo bem vermelho.
Os dias que Pai ficava fora não eram tristes, mas ansiosos. Sabia que Ele chegaria com os samburás cheios e permitiria que eu fosse conferir todos os peixes e perguntar o nome de cada um. Pai sabia que eu era criança curiosa, portanto me deixava vê-los antes de todos.
O meu orgulho maior era saber que Pai, apesar de tudo, era respeitado como pescador pela vizinhança toda. Ele ofertava boa parte de sua pesca para aquelas senhoras com suas bacias em tom de pedido e agradecimento. Sentia tanta alegria quando via o Pai encher as vasilhas de peixes! Imaginava como Ele devia ter pescado cada um deles, mas também tinha dó de vê-los mortos ali, parados, sem alegria alguma. Só o cascudo é que às vezes se mexia, peixe duro de morrer.
Sempre interrogava o Pai e Ele respondia todas as minhas perguntas, às vezes brincando, outras vezes ralhando comigo grosseiramente. Mãe olhava. Gostava de me ver com o Pai limpando os peixes. Às vezes Ela ficava quieta, de olhos embaçados. Depois, como se tivesse um dos rios atravessando o silêncio de seu rosto, brigava muito com Ele. Só eu sabia o motivo da briga.
Depois que Pai e eu terminávamos de limpar os peixes, Ele jogava as escamas e as tripas num buraco lá no fundo do quintal. E eu sempre perguntava: __ Por que faz isso, Pai? E Ele: __ É pra nascer pé de sardinha! Daí vinham os risos, as brincadeiras, as gargalhadas. Pai era engraçado! Eu sabia disso, portanto fazia sempre a mesma pergunta. Mãe ria também. Às vezes nem isso a deixava contente.
O que Mãe mais sabia fazer era fritar os peixes. E tínhamos fartura quando Pai voltava da pesca. Eu e o Pai adorávamos os pequenos: fritada de lambari, com limão! Mãe comia também. Às vezes não. Mãe chorava.
Eu sempre soube que Pai conhecia bem a arte de pescar porque não era somente um pescador. Era também, Ele próprio, um peixe enorme e bonito, ruim de se pescar, difícil de se escamar.
Hoje, sabendo pescar o meu peixe sozinha, limpo nas palavras as suas entranhas pra dizer que Mãe era triste, profundamente infeliz. E eu sabia.
Pai bebia.
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