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Sexta-Feira , 02 de Maio de 2025
 
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5° Lugar - Conto
“Animália”, de Sebastião Aparecido Ferreira
(E.E. Prof. Antonio Matarazzo; D.E. Americana; Sta. Bárbara d’Oeste)

Animália


E quando chegou lá na cozinha ela coava o café com cara amarrada e ele sabia que nem adiantava lhe desejar bom-dia porque continuaria muda, olhando-o de rabo de olhos, acusando-o em silêncio, por ele ainda não ter dado um jeito de fechar a frente de casa onde em tantas noites o animal entrava, danificava o canteiro de flor e aquilo era dolorido para a mulher: a flor labutando para desabrochar e o quadrúpede a estraçalhá-la com seus cascos rombudos, mas fazer o quê? Por mais que quisesse ainda não pudera encomendar na serralharia uma grade bem trabalhada no ferro, jogar nela uma mão de tinta e assentá-la na frente de casa como tanta gente faz quando quer se livrar das lambanças noturnas de um animal estranho. Estava olhando pela janela o canteiro pisoteado, a merda do bicho espatifada pelo terreiro; cinco buracos abertos à porrada na terra amolecida pela chuvinha que caíra ao longo da noite, quando ela disse “está pronto” e, quase fugindo, se mandou lá para o quarto em meio ao ronronar de nariz entupido dos moleques enquanto ele desceu a cortina sobre o despontar sombrio da manhã e se sentou à mesa encabulado com aquele animal que zoneava pelo seu quintal, esmagava a flor inocente e zangava a mulher. Estava indignado, podia jogar espigas envenenadas para o bicho, mas não vislumbrava nenhuma brecha, o animal misteriosamente desaparecia durante o dia e só no avançado da noite, surgindo, não se sabe de onde, vinha recrear no quintal de sua casa; chegava morrendo de sede e nas noites chuvosas secava a golpes de língua a água vermelha escondida nas poças, definitivamente, não ia envenenar o danado naquelas próximas horas, melhor seria fechar de vez a sua frente, quem sabe levantar ali uma cerca provisória de madeira ou estender, de um canto a outro do terreno, fios de arame farpado como se fazia no campo para proteger a boiada, uma inutilidade quem sabe, pois, o animal nas suas farras no escuro talvez pudesse jogar, com um único espanar de rabo, tudo pelo chão e prosseguir se divertindo sem problemas no seu quintal. Naquele dia forjaria um meio de barrar o intruso, estava certo de que encontraria uma saída e todos esses pensamentos vagavam pela sua cabeça quando a mulher atravessou pela cozinha vindo lá do quarto com uma braçada de roupas sujas e, sem olhá-lo, perguntou “você não vai hoje”? Então, ele bateu os olhos no relógio pendurado na parede, o ponteirinho acusava quase sete horas – nem dava tempo de escovar os dentes – se lançou pela porta com os livros debaixo do braço, andou em ziguezague por entre as bolotas espatifadas pelo chão [o cheiro do excremento do bicho misturado com a lama embrulhou o seu estômago] e só lá fora se deu conta de que a chuvinha ainda persistia, que grudava como um bafo gelado no seu pescoço, mas ele não quis voltar para apanhar o guarda-chuva; se via sob a mira de um animal tocaiado no jardim e era terrível imaginar a possibilidade de sua nuca ser decepada pela navalha de um casco traiçoeiro, não dava para vacilar; com cuidado rasgou o silêncio do terreno e foi embora dar aulas de história.

À noite voltando da escola para sua casa, amontoados pelo pasto estavam os postes de concreto, desses que se fincam aí pela rua para correr luz e neles havia várias pegadas, ele imaginou um montão de brincadeiras, mas não se atreveu a nenhuma; preferiu ir entrando, o odor pestilento não infestava o quintal, o canteiro de flor se reavivara, tudo estava limpo, pelo menos por enquanto. Colocou os livros sobre a estante – foram muitas aulas de história naquele dia – reabriu imediatamente a cortina, acendeu o cigarro e com os olhos voltados lá para o pedaço de noite derramando-se sobre a periferia quase rural da cidade ficou tentando se livrar do peso daquele dia. Logo a mulher apareceu e vendo-o quieto perguntou “você já comeu?” Mas antes de ele responder qualquer coisa a mulher digitou o microondas, era outra pessoa e só foi pela força de hábito que ele falou “e os moleques”? Mas a mulher continuava entretida com o microondas, aguardando do forno uma ordem qualquer e só depois respondeu sem pressa “lá em cima no computador”, e foi como se somente agora ele se plugasse ao ruído reprimido da maquininha das crianças e, sem prestar atenção no prato pronto à sua frente, por um certo tempo não pensou em absolutamente nada, satisfeito lá por dentro, porque talvez já soubesse como fechar a frente de casa antes mesmo de a fera retornar.

Mas só foi lá pelas tantas, nesta hora o imprevisto gostava de lhe pregar uma peça, que se lembrou dos postes de concreto abandonados lá no pasto – um senhor feudal lá os deixara – e que dentro de cada um daqueles postes se escondiam barras de ferro. Sabia que com umas quarenta barras punha fim à farra, bastava arrastar os varetões para a serralharia, desenhar a seu modo uma grade e dizer para o ferreiro malhar o ferro conforme o figurino. Esfregou uma mão contra a outra, pensou na frente de casa, no canteiro de flor, na mulher e ali ficou curtindo uma ponta de ansiedade que devagarzinho foi estrangulando-o e, como não suportasse mais aquilo, saltou da cama – àquela hora a mulher já dormia pesado lá no quarto, o reino encantado dos moleques e de certos monstrinhos banguelas – desceu desabalado pela escada, agarrou no quartinho a marreta grande e saiu para o pasto – a periferia resfolegava no mormaço de pedra – soltou com toda força a marreta no primeiro poste que viu pela frente, a ferramenta pipocou no concreto, suas mãos desacostumadas estremeceram com o choque e um ruído metálico invadiu seus ouvidos; aí ele sentiu o peso do mundo sobre os ombros, acendeu outro cigarro, esperou o zumbido se desfazer na cabeça, observou o poste intacto – a cara carrancuda do concreto à luz da rua – tragou fundo, atirou lá longe a guimba e feito maluco se pôs a marretar sem descanso, até que a ponta do poste saltou em pedaços e o primeiro vergalhão lhe sorriu – a dureza do concreto se dobrara ao poder de fogo de sua marreta – logo outros vergalhões foram surgindo e aquilo lhe rendeu ânimo – um pássaro gigante postado no centro do pasto arrancando as vísceras de sua presa, se imaginou, ao puxar, com as mãos ensangüentadas, as barras de ferro da carcaça de concreto e amontoá-las ali num canto – eram barras de ½ polegada, maciças – depois, rasgou tiras da camisa, enfaixou as mãos e atacou o poste seguinte e, com a vontade de quem se descobre no início de um trabalho, um a um, foi destroçando aqueles postes e naquele ritmo prosseguia quando, de repente, as mãos lhe negaram ajuda, começaram a latejar meio bambas; olhou para elas, as tiras de pano que as recobriam estavam ensopadas, o sangue escorria pelo cabo da marreta formando uma borra. Jogou lá pelo chão os trapos ensangüentados, suas mãos reapareceram em carne viva, esbranquiçadas como as mãos de um morto e soube ele que perderia o fôlego na manhã seguinte quando suas mão descarnadas fossem espetadas pelas pontas cortantes das folhas do seu livro de história. Acendeu outro cigarro, tragou profundo, apanhou as varetas de ferro e, lentamente, saiu arrastando-as para casa. Estranhamente começou a sorrir no escuro porque ali no seu costado o ruído das varetas se deslizando na terra lembrava, de qualquer forma, certo caminhãozinho de madeira puxado por um fio de barbante.

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