Menção Honrosa - Conto
“O que mesmo?”, de Floriana Toscano Cavallete
(E.E. Dr. Kyrillos, D.E. Centro-Oeste; São Paulo)
O que mesmo?
--Menino, já pra cama! Não vê que esse chão frio faz mal? Ainda machucado...
--Ih, bisa! Quem está machucado?
--Quem? O que mesmo?
Olhou para o menino, era o bisneto ou era o filho? De novo tinha-o confundido com o filho pequeno. Ficava nervosa quando isso acontecia. Procurava se defender, respondia alguma coisa. Chamava a atenção do menino:
-- Isso é jeito de falar com os mais velhos?
Foi até a porta buscar um tapetinho de crochê para protegê-lo da friagem do chão. Era o único que tinha sobrado. A neta não gostava de tapetes de crochê, dizia que eram uns trastes velhos. O bisneto continuava lá. Olhou-o, agora sem estranhar. Meninos de hoje. Mães de hoje. Ninguém mais liga para friagem. Abaixou-se, mais agitada que de costume.
Pressentiu o vento lá fora. O que ele estava trazendo dessa vez? Lembranças ou esquecimento? O tempo calmo era bom para sentar na varanda e contar as histórias de antigamente. Lembrava-se como se fosse hoje. Os pais, os tios, os filhos pequenos, primos, avós, vizinhos, conhecidos. Nunca se esqueceu de nada, de ninguém. Desfiava histórias, emendava uma ponta na outra e ia trazendo pelo fio de sua voz sumida uma fileira de gente, acontecimentos importantes e insignificantes. Insignificantes? Nada era insignificante. Era a memória de sua vida, de seus antepassados, dos antepassados daqueles que estavam ali e muitas vezes nem escutavam direito. Cochilavam, pensavam em outra coisa, fazendo cara de quem acompanha muito bem. Gente velha. Trastes velhos. Tempo que já foi, que não resolve nada. Pensavam que ela não percebia? Percebia, mas continuava contando. Alguma coisa sempre havia de ficar naquelas cabeças ocas.
Será que era de tanto contar que aquilo estava acontecendo? Memória também deve gastar... Por que tinha de sentir aquele esgarçamento e não poder fazer nada? No meio da frase fugia o nome de pessoa ou do lugar, um detalhe importante que não poderia ter esquecido – tinha contado tantas vezes aquela história! - onde ficava aquela rua, aquela praça? Quem era aquela pessoa vestida de branco naquela festa?
Tentou reagir. Primeiro foram as palavras. Então, suas mãos se agitavam à procura de trabalho e apanhava a primeira coisa que encontrasse pela frente.
Depois, fatos inteiros começaram a se romper. Foi por essa época que desenvolveu um andar incessante, e um fazer, fazer, fazer, sempre interrompido para buscar uma ponta que se soltava de repente. Ia e retornava, apanhava uma ponta, mas deixava outra lá. Unia aqui, soltava ali, e a trama ia se descosendo. Se voltasse ao ponto de partida, o fato não voltaria inteiro, mágico? Como quando ia buscar alguma coisa na despensa e se esquecia. Parava, olhando o vazio, perguntando-se o que é que tinha ido fazer lá. Voltava para a cozinha, e se lembrava: tinha ido buscar o pó de café, ou o tempero do feijão, ou o sal que tinha acabado no saleiro.
O menino gritou com seus heróis de borracha. Ela se ergueu. Teve certeza de que ia ventar aquele dia. O tapetinho branco de crochê, encardido com aquela poeira preta de escapamentos de carros, tinha de ir para o tanque de novo! Ao levantar-se, já segurava o mesmo tapete que suas mãos moças esfregavam para limpar o vermelhão dos tempos do interior. A água na bacia de alumínio, a barra grande e macia do sabão feito em casa, a espuma branca. Afastou-se do tanque, o tapetinho lá. O que mesmo? O que tinha ido fazer lá? Andou até o quintal. Bateu o vento, ela olhou a vassoura. Precisava varrer as folhas da calçada.
Na direção da rua, um ponto qualquer chamou sua atenção. Quem? O que mesmo? Agitou-se muito, empurrando nervosamente as folhas caídas e os ciscos que o vento trazia teimoso para a frente de sua porta. O vento também parecia meio agitado nesses tempos de seca. Esquecia-se de trazer chuva boa para lavar aquele pó insuportável. Igual àquele vento de antigamente, no interior. Levantava uma poeira vermelha que parecia virar o mundo de cabeça para baixo. As crianças vinham com as roupas vermelhas, não conseguia manter brancos os tapetinhos de crochê espalhados pela casa. E tocava esfregar aquelas camisas antes brancas, colocar ao sol, que clareava um pouco, mas o ar não ajudava. As paredes eram vermelhas, a gente era vermelha. Quem chegasse de
fora via melhor aquela vermelhidão que tomava conta do mundo. Ela via. Estava acostumada com tudo alvinho, roupa corando ao sol sobre o mato aparado para esse fim. Sempre tinha cuidado da casa, tinha respirado fumaça de fogão a lenha, assoprado brasas do ferro de passar. As roupas de linho, brancas, engomadas. Água de rio, água de poço. Tudo fresquinho, tudo limpo.
Quando tinha chegado ao interior com os filhos pequenos, precisou se arrumar sozinha. Tudo muito difícil, mas nunca teve medo de nada. Nem no dia em que o mais velho fez um talho no pé ela se apertou. Apanhou uns panos limpos para segurar o sangue do menino e se foi para a Santa Casa. Era longe, tinha de ir andando, menino no colo. Mas peso de filho não é nada para mãe aflita. Então tinha ido até a Santa Casa... Fazer o que mesmo? O que mesmo? E o vento insultava aquela memória que se debatia. A vassoura agitou-se um pouco mais. Cisca, cisca...
Retornou para o quintal da casa, à procura de alguma coisa. Encontrou o tapetinho de crochê esquecido no tanque; lá dentro, um pano velho mas limpo...
--Foi um curativo e tanto no menino. Dez pontos! Já se viu? Quase ficou sem andar. Ainda bem que eu corri. Também, a vida era assim antigamente. A casa, os filhos, o marido.
O marido tinha-se ido faz tempo. Todos tinham-se ido. Para onde? O menino não vê o vento, ninguém vê o vento. Foi fechar a janela, para aquele vermelhão não vir sujar seus tapetinhos. Debruçou-se para fechá-la. Olhou o jardim seco. Alguém precisava buscar água.
--Menino, chama teu pai para ajudar a tirar água ...
--Ih, bisa! Tirar água? Tirar água de onde? O pai está trabalhando!
--O que mesmo?
Aquela seca não acabava nunca! O vento açoitava as janelas e ela se sentia muito cansada. Quem sabe ele estava trazendo chuva dessa vez? Finalmente poderia sentir-se mais tranqüila, o mundo verdinho e limpo de novo. As plantas molhadas, o cheiro quente de terra invadindo as narinas. O vento também levaria aquele nevoeiro e as coisas finalmente voltariam a clarear. Precisava afastar aquele cansaço. Todos estavam demorando tanto!
Olhou o menino ali na sala, brincando, na calma do fim da tarde. Ele estava bem. Tudo estava bem?...
Então aproveitaria para fazer novos tapetes. Não vê que de tanto esfregar, eles já estavam esgarçados? Esgarçados e velhos! Precisava fazer outros. Era isso: precisava fazer outros!
Foi buscar linhas. Sorria? Apenas trazia linhas e o desejo de tecer. O vento balançou levemente sua cadeira no canto da sala. Soprava calmo agora. Sentou-se, convidada. Tão bom sentar na sua cadeira de balanço... e suas mãos fizeram o que sabiam fazer.... fim de tarde, serviço de casa terminado...
Respondeu então ao menino, porque não se deixa uma criança sem resposta:
--Do poço, menino. Chama teu pai para tirar água do poço, que isso é serviço de homem... É serviço de homem...
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