Menção Honrosa - Conto
“Presos na rede”, de Douglas Henrique Cardoso Cartez
(E.E. Cônego José Fortunato da Silva Ramos; D.E. S. José dos Campos; S. José dos Campos)
Presos na rede
00:01h, sexta-feira.
SexC@t: ...hey... vc tá aiiiii? — O cursor piscava só na tela. Ninguém respondeu. Mal podia esperar que ele aparecesse. Mantinha os olhos fixos à tela. Ele nunca se atrasara antes. Justo hoje, pensava ela. Clicou no ícone do WinAmp, na barra de ferramentas, buscou os fones de ouvido com o microfone acoplado e colocou-os, ajustando-os ao mesmo tempo que selecionava um diretório inteiro de .MP3s para tocar. Luka cacarejou o seu Tô Nem Aí, abrindo a seqüência. Com um clique voltou à tela do Chat.
Seus pais passariam o final de semana todo na chácara da família, a meio caminho para São Francisco Xavier, e Tati se sentia agitada, por isso. Havia tempo que não se sentia assim, desde a última decepção amorosa. Agora dava pouca importância àquilo, mas realmente sentia falta de alguém. Na verdade, havia tempo que não saia com ninguém e sua vida social agora se limitava à Rede.
00:03h. Tomou outro longo gole de suco de laranja direto da Tetrapak e colocou a embalagem sobre o monitor, agarrou mais dois Bis da caixinha e os devorou cuspindo um pedaço do papel que foi junto. O cursor piscava na tela solitário. SexC@t. SexC@t. SexC@t. Onde estaria ele? Ela mexeu na pequena webcam à sua frente. O que fariam hoje? Na verdade, a excitação era grande e por sua cabeça mil coisas malucas passavam. Mil perversões, mil depravações.
00:07h. Contava os segundos, cada vez mais longos. A sala particular de bate-papo, criada para terem privacidade em seus encontros virtuais continuava vazia. Nada dele. Será que não viria? Preferiu não cogitar tal pensamento. Sentia que o calorzinho na barriga enquanto esperava dar a hora do encontro, começava a se esvair. Talvez isto de namoros e paqueras virtuais fosse realmente coisa de nerds ou gente anti-social. Nos seus ouvidos o Tô Nem Aí, parecia bastante sugestivo. A tela continuava vazia, nada na barra de status, nenhum sinal, mas arriscou de novo:
SexC@t: olah? — E ao mesmo instante.
WK: : )
SexC@t: uff... pensei q ñ viria...
WK: aK sTOu..
SexC@t: c tá legal? Pensei q ñ viesse...
WK: tÔ bElê. jÁ tAVa pOr aK... sEMpRe sStOU ak...
SexC@t: vc é d+, sabia? nmas, pq demorou pra entrar??
WK: hmm... sURpReSas... dEPoiS eU cOntO... fALa aÍ, nEWs poR Aí?
SexC@t: hmm, xá vê... ñ sei ... TÔ SOZIhA EM CASA!!
SexC@t: uups... SOZINHA... meus pais foram pra chácara
WK: LEgaL! dO jEIto k eU kEriA.
SexC@t: ah, eh? E o q c vai fazer comigo? Vai me pegar e violar??
WK: vAMos, vEr... 1o. VamOS LiGar nOsSAs cÂMerAS.
SexC@t: hmm, acho q eu tô com um pouco de medo.;
WK: pq eSTá c/mEDo?? ñ DIsSE k esTá sOh Em cASa?
SexC@t: sorry.. é q eu sou tímida, numsei... nunca fiz isso. É estranho
SexC@t: acho q é bobeira minha, mas é q fico com vergonha
WK: dEIxa dE eNRoLar... a gEnTE vAi Se eNtREgAR...
SexC@t: ah, gostoso, . Vamos fazer amor mesmo???
WK: Ñ, sUA pUTinhA... vAMos tREpAR mESmO!!!
SexC@t: oossa, num fala assim q eu fico molhadinha! Shhhhh....
WK: vAI oU ñ VaI lIGar @ cÂmeRA?
SexC@t: ok, ok. Me dá uminstantinho pr´eu coloca a mascara, tá???
Ela virou-se e pegou a máscara de plástico que descansava sobre a cama. Era daquelas que se conseguem nas lojinhas de 1,99 com um elástico branco para prendê-la e os contornos da caricatura em alto relevo. Uma cara branca de gatinha siamesa com bochechas rosadas, brinquinhos e fitilho lilás. Ela colocou a máscara e a prendeu. Sua cabeça era uma alegoria. Os fones sobressaíam-se pelas laterais da máscara e o microfone ficou oculto. Ajustou os orifícios à altura dos olhos e viu na tela:
WK: teNHo AlgO mUitO eLEtRizANte pRa vC, mEU bEIn!
SexC@t: o q? ME CONTA... ME CONTA...
WK: mELhor...... vou Te fAZeR sEnTir... tE fAZer vIVê-Lo!!!
SexC@t: Ahhh, conta vai... senao eu choro ! snif!
WK: xAh dISto, mENiNa. LoGO loGO Vc vAI sE eLEtRiZAr dE tESão...
SexC@t: Sabe a foto q vc me mandou?? fiz uma montagem c/uma
WK: hUh?
SexC@t: ...foto minha. Acho q ficou legal, queira te mostrar.
WK: qUaL? eSta?
A foto-montagem explodiu enchendo a tela de seu computador. Tati ficou atônita por um instante. Olhava para a montagem que fizera, utilizando uma foto que tirara no parque da cidade sobre-exposta à dele. Com um pouquinho de paciência conseguiu disfarçar os nuances mais fortes e apesar de obviamente continuar sendo uma péssima montagem, até que eles não pareciam tão ridículos e pelo menos ela não parecia estar flutuando na foto. Minimizou a tela e voltou ao Chat:
SexC@t: hey , como vc fe\z isso? como conseguiu esta foto???
WK: hEHeHeEhEh... eh sOh 1 pOUco dO K pOSSo faZEr!
SexC@t: ai, q medo.. MAs, vc ñ vai apagar tudo do meu PC, vai?
WK: Ñ, mAS PoSSo fAZeR muITo +... ehEhEHe...
SexC@t: q medo... nossa, vc me pegou. Queria aprender essas coisas... assim, de invadir o computador dos outros, Vc deve manjar muito disto, neh?
WK: + oU -, honey. iStO é moLEzA!
SexC@t: ok! q + vc vai mostrar pra sua gatinha? — Subitamente abriu-se uma nova janela retangular à direita da tela. A webcam dele fora ligada. Dentro dela, surgiu uma pequena gatinha de pelúcia rosado com um coração escrito em letras brancas “Eu te adoro”.
— Está me ouvindo? — disse ele. O Baba Baby, de Kelly Key, desapareceu dando espaço a uma voz metálica e arrastada, que ricocheteou dentro de sua cabeça. Ela sobressaltou-se na poltrona, sufocando um grito.
— Hoje você está querendo me matar! — tinha o coração aos saltos.
— Hmm... hoje, eu estou cheio de surpresas — sua voz continuava arranhada. Provavelmente era devido à conexão na Rede, pensou ela.
— Que gracinha — admirou-se — É pra mim?
— Talvez — disse — Talvez eu também lhe dê outras coisas. — E então seus ouvidos se encheram de um som estrondoso. Tempestuoso pra dizer a verdade. Ozzy Osbourne vomitava um Heavy Metal qualquer.
— Ei, que coisa! Desliga isto! — afastou os fones do ouvido — Você não está muito romântico hoje — disse. Suas mãos tremiam um pouco. Havia algo que lhe intrigava em tudo aquilo. Ela continuava encantada com ele, bonito e inteligente, mas subitamente ele aparecera todo misterioso. Assustador, talvez. De qualquer forma, estavam apenas em um contato virtual. Esta era uma das vantagens da Rede. Desligue a tomada e tudo se acabou. Pelo menos era assim que ela pensava.
— Vamos brincar, gatinha? — desta vez sua voz pareceu mais normal. A câmera foi voltada para ele. Estava sentado em uma grande poltrona e vestia um colete sem mangas do estilo militar desabotoado. Levava sua máscara de Nell, personagem principal do Matrix. Eles habituaram-se a utilizar máscaras à frente das câmeras, por isto ainda não haviam se encarado diretamente, apesar de já se conhecerem por fotos. — Realmente quer brincar aqui comigo?
— Quero! — disse com vigor. E então se levantou frente à câmera e começou a despir-se. Desabotoou a camisete de brim amarelo-pardo e por baixo surgiram seus fartos seios naturais, de mamilos pontiagudos e aureolas róseas. Logo abaixo seu umbigo portava um delgado piercing em forma de C com duas esferas douradas nas extremidades, numa barriguinha ainda firme.
— Eu te chuparia todinha — disse ele. Inclinou-se, aproximando-se da câmera e atirou para o lado seu colete. Estufou o peito, levantando o rosto num ar de soberba e se afundou na poltrona de novo.
— Quero ver você tirar tudo, gostosão! — ele segurava a gata de pelúcia no colo e a acariciava. Começou a movê-la para cima e para baixo sugestivamente. Seu rosto afastado não era mais do que uma borra e os movimentos quadro-quadro a excitavam. Ela baixou lentamente o short, movendo-se como uma serpente. Acariciou-se através do rosáceo lingerie. Ele não se levantou e apenas limitou-se a baixar despreocupadamente as calças, se dispensando delas movendo as pernas como se pedalasse no ar. Estava nu, afora a ridícula máscara Matrix que lhe mistificava o rosto.
Havia um silêncio momentâneo. Tati curvou-se mantendo o rosto à frente da câmera, mas deixando espaço suficiente para que ele pudesse vê-la retirar sua última peça. Então se sentou, abraçou os seios e esperou:
— Isto, garota! — disse — Agora só falta uma coisa.
— Você primeiro — ela respondeu.
— Assim, não vai dar. Sabe que temos que fazê-lo de uma vez.
— Tá. Contarei até três. Certo?
— Certo, minha cara.
— Um! — respirou fundo — Dois! — segurou a borda inferior da máscara. Ele a imitou com precisão. — TRÊS!
Retiraram as máscaras sincronicamente. O efeito foi mais veemente que o esperado. Na verdade, ela não compreendia o que via por inesperado que fora. O rosto dele era um eczema cadavérico extraordinário e por um instante pensou que ele usava uma outra máscara por baixo. E de muito mau gosto por sinal. Mas quando aquilo falou percebeu que talvez tudo fosse um erro.
— HAHAHAHA, SUA PUTA! — agora compreendia porque sua voz era arrastada. Sua boca era pastosa como uma ferida purulenta e viscosa.
Ela ficou chocada. Suas pernas estavam frouxas, o coração saltando e o suor brotando. Mas ocorreu-lhe, então, que aquilo não estava ali. Por pior que fosse bastava desligar o comutador e tudo acabaria. Entretanto, azedamente seus ouvidos foram entupidos por uma canção fúnebre. Ao fundo ouvia os gritos daquela voz pastosa. Menos interessante ainda foi sentir que os fones de ouvidos, repentinamente, começaram a apertar-lhe como uma prensa, vagarosamente. O microfone por sua vez também, pareceu adquirir vida, saltando para sua boca e prendendo sua língua, impedindo-lhe de qualquer argumentação.
— Gosta do que eu posso fazer? — agora a coisa havia se transformado no que poderia ser descrito como um banquete de canibais que fora esquecido na fogueira e passara bastante do ponto. E de alguma forma fumegava.
Tatiane engoliu o medo e a confusão mental que transpassava no momento e conseguiu levantar as mãos para desligar o interruptor, mas foi repelida por uma pequena descarga elétrica. Olhou firme e não acreditou. O fio do mouse flutuava à sua frente. Mas ela não teve tempo de digerir esta novidade tecnológica. Ele se enrolou firmemente a seus pulsos imobilizando-a. Talvez fosse tudo um sonho. Óbvio que nada daquilo era verdade. Haha. Abaixo da escrivaninha suas pernas também foram pescadas e separadas, por algum fio voador. Olhou novamente à tela e ouviu o Sr. Torradinho lhe dizer:
— Venha eletricamente gozar comigo, SUA VACA!
Sua cabeça foi puxada para frente por uma força descomunal através de um dos mais modernos instrumentos de tortura chinesa. Um fone de ouvido com microfone acoplado.
20:12h, sábado. Os pais de Tatiane chegaram. Cansaram-se de ligar e não obterem resposta e resolveram voltar para averiguar o que acontecia. Quando entraram na casa, não havia luz, e somente chegaram ao seu quarto no segundo andar, graças a uma grande lanterna Ray-o-Vac de pescador, e então tudo foi esclarecido. Pelo menos no que se referia ao destino da garota.
Tatiane tinha a cabeça cravada no monitor do computador. Os fones ainda estavam presos à sua cabeça. Quando a retirassem de dentro do monitor, descobririam que o microfone acoplado fora fincado em sua língua projetando-se num ângulo retorcido que chegava à sua garganta. Seu corpo nu estava estirado sobre a escrivaninha como se tivesse sido arremessada contra o monitor. Tinha os braços estendidos ao longo do corpo e tinha as mãos atadas por um fio e pendiam sob seu corpo próximo a região inguinal. Uma das extremidades do fio pendia solta. A outra levava ao mouse que fora totalmente introduzido em sua vagina. O odor de carne queimada azedava o ar. Uma gata de pelúcia atirada ao chão passou desapercebida por todos.
Sobre a escrivaninha havia legiões de formigas que se revezavam pelos restos secos do suco de laranja. Segundo os legistas, graças ao suco a garota morrera rápido, pois em contacto com os circuitos do monitor, gerou uma condução tão devastadora que a matara em milésimos de segundos.
A polícia técnica não encontrou impressões digitais nem quaisquer indícios que outra pessoa estivera na casa, que estava totalmente trancada por dentro. Não havia sinais de violência, afora os perceptíveis na cena do crime. Nenhum esperma, mordidas, arranhões e ou pancadas que demonstrassem uma resistência por parte da vítima. Ao analisarem o conteúdo de seu disco rígido, descobriram muita pirataria e pornografia, mas também fotos de Tatiane. Em uma delas, a mais recente, segundo a última data de modificação do arquivo, ela aparecia em uma montagem junto a um rapaz. O mais intrigante é que descobriram que o rapaz morrera exatamente um ano antes da morte dela. Era técnico em manutenção de hardwares e sofrera uma descarga elétrica fatal, ironicamente quando desmontava seu próprio computador, segundo relato da família.
Seu pseudônimo WebKiller, apesar de sugestivo, pouco ajudou nas investigações.
<< Voltar |