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Sexta-Feira , 02 de Maio de 2025
 
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2° Lugar - Ensaio
“A Difusa presença do contexto social nos romances de Lygia Fagundes Telles”, de Cláudio Sérgio Alves Teixeira
(E.E. Prof. Alberto Bacan; D.E. Guarulhos Sul; Guarulhos)

A Difusa Presença do Contexto Social
nos Romances de Lygia Fagundes Telles

Breve Proposição Temática à Guisa de Introdução

Lygia Fagundes Telles estréia como romancista com Ciranda de Pedra (1954), a este se seguem Verão no Aquário(1963), As Meninas(1973) e As horas nuas (1989). Em cada um destes delicados romances lida magistralmente com os matizes que compõem os traços marcantes das personagens das quais narra histórias aparentemente simples, por vezes familiares, sempre tocantes. Se não chega a se destacar como exímia criadora de enredos mirabolantes, isto não compromete sua produção, posto que prefere o caminho sutil das nuances psicológicas.

Seu olhar de ficcionista incide sobre aquilo que se passa no âmago de suas personagens, não ao seu redor. Assim, o viés intimista do qual se vale não se concentra em marcadores sociais claramente identificáveis. É uma escritora de insinuações, alguém que capta com fina sensibilidade a alma de suas personagens, não do meio em que elas vivem. Pelo menos, esta é a noção que se tem dela. Entretanto, tal assertiva não poderia estar mais distante da realidade. Ocorre que, centrada que está no íntimo destas ‘pessoas’, uma análise da sociedade na qual estas se inserem fica tergiversada mais do que descrita; relutante sim, jamais ausente. É exatamente a importância do contexto social na formação da psiquê das personagens que se pretende tratar aqui.

Tomada de Consciência

Ao ser que está criando noção do mundo e de si compete o alicerçamento da própria individualidade, que não irá indispô-lo com sua herança cultural, vai antes permitir que sobreviva com as duas naturezas, uma social e outra particular. Se umas delas mostra-se mais, isto é antes um mecanismo de defesa: agir como é esperado chama menos atenção e, conseqüentemente, causa menos reprovação. Contudo, este crescimento da individualidade e consecutiva tomada de consciência de si e do outro não ocorre por linhas definíveis, num trajeto retilíneo do mais obscuro para o mais luzidio. Há um consórcio de imposição social, formação particular e a essência individualíssima de cada ser. O fato de a autora dar ênfase a esta essência representa mais sua aptidão para o incerto e vago do que preponderância dele sobre os demais.

No caso específico de Lygia Fagundes Telles este amadurecimento de si, este desabrochar da própria personalidade dá-se sempre através de um traumático processo de afirmação que transcorre lentamente, quase que imperceptivelmente, tanto quanto para quem o vê quanto para quem o vivencia. Não há rompantes de fúria, não há acessos de lucidez surgidos do confronto com o real, há antes uma gradativa percepção do que é verdadeiro, em oposição ao que é transmitido culturalmente, num pleito não menos dolorido porque silencioso.

Determinantes Sociais

Na avassaladora maioria dos casos as pessoas são geradas dentro de uma família comum, uma entidade social que é uma representação, em menor escala, da Sociedade na qual esta se insere. Destarte, a família representa o primeiro contato do indivíduo com seu agrupamento social. Juntamente com a língua, compete à família a transmissão de valores, a iniciação à educação moral, enfim, a educação do indivíduo dentro daquilo que a sociedade quer para si. Através da família e, posteriormente da escola, o grupo social lega a cada ser um vasto arcabouço cultural que, se não delimitam as proporções da consciência, ao menos influi muito sobre ela. Eis como isto se mostra nos romances de Lygia Fagundes Telles.

Virgínia, a personagem central de Ciranda de Pedra, vive uma situação das mais insólitas. Mora com a mãe separada, tendo como padrasto um quase ausente médico, tão ocupado com a esposa que não tem tempo para dedicar atenção à enteada, que dirá carinho. Enquanto a mãe caminha para uma reclusão imposta pela loucura, deixando a filha como que à deriva, criada pela empregada, esta menina, habitante de uma casa silenciosa e triste, fantasia uma vida melhor na casa paterna para a qual faz visitas esporádicas e onde moram suas duas irmãs, tida como a imagem mais completa de felicidade.

“Que casa! (...) Na semana passada ele trocou de automóvel por um novo, todo preto, com almofada vermelha, uma beleza de automóvel. Bruna e Otávia parecem duas princesas”,(Ciranda de Pedra,p.19).

Como fazem os excluídos que supõem haver felicidade onde há riqueza, a infeliz garotinha acredita que se mudasse para tal moradia teria vida principesca igual a de suas irmãs. Ocorre que, ela descobrirá mais tarde, os membros desta família compõem uma sociedade de pedra que não está aberta a novos membros, tal como a Sociedade em lato senso, tida como alta, jamais se pretendeu aberta a novas inclusões. Se aceita um que outro de vez em quando, isto se deve menos ao caráter democrático desta aristocracia dissimulada e mais a imposição do dinheiro deste novo rico, cuja denominação já denota seu caráter de invasor.

Somente após um lento e doloroso processo de individuação, Virgínia percebe as contradições e veladas armadilhas que tal agrupamento social mantém. Crescida, ela é convidada a tornar-se amante de Afonso, seu cunhado, compondo assim o ideal burguês masculino de manter esposa e amante, ou seja, uma vida séria e responsável alternada a outra libertina e, quiçá, mais prazerosa e excitante. No ideário burguês de Afonso, está descartada a possibilidade de largar a aparência de um casamento feliz por uma aventura. Sua explicação para tanto, de tão implausível e convencional, é um primor de obviedades.

”Mas, amor, você não entende? Não posso abandonar minha família, ela não pode pagar pelos meus erros. Criaremos o nosso mundo à parte”, (CP, p. 129).

Nenhum dos envolvidos, exceto Virgínia, foge do roteiro convencional de ignorar aquilo que parece árduo demais para ser tratado. Se o conhecimento dos deslizes matrimoniais de todos é conhecido, há como que um acordo tácito de manter tudo em segredo. Todos sabem tudo, ninguém fala ou faz coisa alguma. Por séculos as famílias brasileiras têm mantido comportamento assemelhado acerca de seus pequenos segredos, principalmente os segredos entre cônjuges, bem expresso pelo adágio popular segundo o qual não se mete a colher em briga de marido e mulher.

Situação bastante diversa vive Raíza, a jovem órfã de pai protagonista de Verão no Aquário, que vive o drama de estar apaixonada por um jovem seminarista que sua mãe, uma romancista bem-sucedida, tomou como protegido. Assombrada pela memória do pai falecido e dilacerada pela incerteza acerca da existência de um caso entre sua mãe e seu amado, Raíza leva uma vida de prazeres frugais, na qual não estão ausentes horas de auto-flagelação alternadas com tardes ociosas bebendo com um noivo que não ama e alguns amigos, pelos quais nutre confusa amizade, variando entre a devoção e o escárnio, inclusive pela prima Marfa, esta também uma inadaptada.

Tal como a juventude que, hodiernamente, busca a solução para suas aflições nas drogas de uso recreativo, também os jovens deste livro se entregam aos vícios. Marfa, por exemplo, sustenta que “até para se viciar é preciso ter caráter”, (Verão no Aquário, p.48), então “saía de uma bebedeira e entrava logo em noutra mas nos intervalos tinha verdadeiros acessos de energia, trabalhando com uma eficiência”(VA, p.48), sonhada pelos que , no dia-a-dia dedicam todo o tempo a ganhar muito dinheiro apenas para , sem maior projeto sobre o que fazer com ele, gastá-lo à noite, buscando compensar o vazio do dia numa atribulada vida noturna.
As meninas certamente é romance no qual se nota mais nitidamente as idiossincrasias da sociedade de sua época, qual seja, o turbulento contexto sócio-político da década de 70, período em que o Brasil atravessava violenta repressão pela Ditadura Militar que ora governava a nação. Neste meio turbulento convivem Lorena, rica, fútil e bondosa; Lia, uma militante esquerdista e Ana Cláudia, moça que busca a redenção da infância pobre através de um casamento com um velho rico, ainda que ame outro homem. Estas três jovens revezam-se como narradoras do romance, cada qual expondo seus dramas, não sem uma boa dose de racionalização.

Ana Cláudia remete à juventude alienada que viceja atualmente. Acredita-se merecedora de sorte melhor do que tivera graças aos seus dotes físicos.

“Sou modelo. Uma beleza de modelo”(As Meninas,p.33).

Se a vida não lhe propicia vida a vida desejada, ela resolve buscá-la através de um casamento de conveniências com Hachibe, um velho rico e nojento a quem ela só se refere como “escamoso”. Se o Afonso de Ciranda de Pedra sonhava com uma amante, este velho rico sonha comprar uma companheira adolescente, como fazem tantos tão ricos e velhos como ele, dentro e fora das páginas de um romance.

Lia, por outro lado, desempenha o papel que muitos contemporâneos seus desempenharam: o da ativista política. Numa época em que, para os não “alienados”, era preciso lutar contra a Ditadura, ela incumbe-se de lutar pela pátria, pelo povo, ainda que isto signifique o sacrifício da vida pessoal.

“Não tenho horas vagas, entende. Distribuo panfletos, oriento um grupo de estudos e traduzo livros. Isso quando não aparece uma missão mais importante” (As Meninas, p.116).

Lorena, a que causa imagem mais simpática no leitor, vive entre as duas, conflituosamente. Sua amizade é sincera, tanto que chega a emprestar seu carro para as “missões” de Lia, porém isto não a poupa do escárnio da outra, tampouco da desdenhosa inveja de Ana Cláudia. Os atos de todas estão viciados, carregados de conotações políticas: engajadas de um lado; alienadas de outro.

Através destas garotas que ocuparam de modo improvável a mesma escola tem-se um vasto painel de um período e dos dramas daqueles que o viveram.

Rosa Ambrósio, a solitária decadente atriz retratada em As horas nuas, não usa qualquer eufemismo para descrever o mundo ao seu redor, entendido por ela como decadente e permissivo.

“A rua suja, o teatro sujo. A televisão. Começaram agora a usar crianças nos anúncios de máquinas, sorvetes, refrigerantes. As menininhas fazendo gestos e esgares sensuais de puta”(As Horas Nuas, p. 19).

Para uma atriz que fizera tanto sucesso, vegetar em casa, embriagada e solitária, a nostalgia é especialmente dolorosa, posto que não oferece consolo com a imagem de melhores dias, apenas cutuca a chaga aberta, provocadoramente.

O comportamento do indivíduo adequado ao meio social em que vive é o que faz com que Diogo, o “secretário” e posterior amante de Rosa Ambrósio envolva-se com sua patroa muito mais do que profissionalmente. Ele é ambicioso e vaidoso, ela tem condições de satisfazer seus desejos, o resultado é o esperado. Há ainda, neste estranho romance em que dois narradores se intercalam, sendo um deles um gato de muitas vidas passadas, um exemplo extremado deste amoldamento ao meio: o gato Rahul recorda-se que, sendo um jovem na Roma antiga, é sodomizado por um contemporâneo. A recordação que tem de tal ato é, além de natural, bonita, prova de que o indivíduo age em conformidade com aquilo que sua sociedade tem como aceitável.

Esta noção do cabível nos personagens de Lygia Fagundes Telles não é, no entanto, definitiva. Suas personagens mantém vívido entendimento do que querem e do que querem que eles queiram. O fato de coordenarem tais expectativas atesta suas adaptações à Sociedade. As imposições grupais não imperam em todos os atos, apenas permite aos seus membros portar-se de acordo com a vontade da maioria, de modo a não atrair para si atenções desnecessárias. Concomitante, um turbilhão de emoções move-se no cerne de cada.

Temas Incidentes

Visto que a conjuntura social influi nos atos das personagens, ao menos no nível em que eles se expressam, o que quase nunca coincide com o que se passa em seu interior, resta destacar outros dois temas costumeiros nos romances de Lygia Fagundes Telles, também de forte ressonância dentro da sociedade: a religião e o sexo. Tal qual no Gênese, estes dois são vistos como opostos, embora se intercalem num paradoxo sofrível para aqueles que não conseguem equacionar a vocação para primeira e a pulsões do segundo.

A religião especificamente fornece refúgio até mesmo para os que não crêem nela, como Virgínia. Não suportando mais a casa do pai, a mesma que ensejara sonhos de felicidade plena, ela resolve internar-se num colégio de freiras. Lá, se não encontra a paz da fé, ao menos tem a amizade de Ofélia, sua colega de quarto e a devotada proteção de Irmã Mônica.

Quanto ao tema do sexo, interessante notar o contraste entre a o ímpeto liberal de Otávia de Ciranda e a censura recalcada de Rosa Ambrósio de As horas. A primeira é uma típica filha da burguesia abastada, que leva uma vida de frívolas aventuras eróticas, sem jamais se envolver de verdade, chegando mesmo a dormir com homens por “curiosidade”, como fez com Pedro, seu motorista. Este tomar como amante um funcionário, embora não possa ser descrito como típico das classes abastada, tampouco é pouco usual. Ao passo que a segunda, contrastando com o liberalismo da filha, apresenta uma atitude proibitiva que destoa do mundo em que vive, principalmente por ser ela uma mulher de consciência supostamente elevada:

“...uma artista. Meu nome é Liberdade!(...) Mas tenho uma modesta pergunta a fazer, será conveniente que loucura e sexo fiquem assim soltos na praça?”(As Horas Nuas, p.19).

Aliás, nos romances de Lygia Fagundes Telles, resta bem pouca opção para aqueles que querem harmonizar estas duas constantes.Alguns se entregam aos vícios do mundo, embora saibam-nos vazios e pouco compensadores, outros se entregam a uma fé estóica. Optam pela fé o Conrado de Ciranda de Pedra; André de Verão no Aquário e Lorena de As Meninas. Preferem os prazeres terrenos, respectivamente dos mesmos livros, Otávia e Afonso; Marfa e Fernando; Ana Cláudia, além de Cordélia e Diogo, de As Horas Nuas.

Determinismo e Individualidade

Neste ligeiro ensaio não se pretende apontar qualquer tipo de determinismo social na obra de Lygia Fagundes Telles, pretende-se apenas realçar a influência que o meio desempenha em cada pessoa, bem como a luta personalíssima que cada um deve travar para afirmar-se em uma como ente autônomo dentro de uma Comunidade, mormente como a nossa, que almeja cada vez mais ser Universal e, com isto, desrespeitando o que possa haver de traços particulares dentro do ser, embora inexplicavelmente destrate quem não os apresente.

Parte do encanto da autora vem exatamente de sua fina argúcia para este desabrochar da personalidade, tema tão bem tratado em cada um de seus romances.

Suas personagens parecem manter uma conduta condizente com seu papel na Sociedade. Vestem a máscara social que lhes cabem e atual coerentemente com esta identidade pela qual são conhecidas. Em suma, não se desvencilham daquilo que Jung chama de persona, entendido como conjunto de atitudes que se espera de alguém que represente dada função dentro da Coletividade. Contudo, os personagens de Lygia Fagundes Telles , não obstante este aparente comportamento até estereotipado, mantém vida interior das mais intensas e expressão desta vida e desta intensidade é o que empresta o qualificativo grande ao denominativo escritora que Lygia Fagundes Telles merecidamente ostenta.

Bibliografia

• Telles, Lygia Fagundes_ Ciranda de Pedra, Rio de Janeiro, Rocco 31ª ed. 1998.

• Telles, Lygia Fagundes_ Verão no aquário, Rio de Janeiro. José Olympio 5ª ed. 1978.

• Telles, Lygia Fagundes_ As Meninas, Rio de janeiro, Rocco, 32ª ed. 1998.

• Telles, Lygia Fagundes_ As horas Nuas,Rio de Janeiro, Rocco, 4ª ed. 1999.

• Sharp, Daryl_Léxico Junguiano, um manual de termos e conceitos, São Paulo Cultrix (Tradução de Raul Milanez), ed.s.d..

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