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Sexta-Feira , 02 de Maio de 2025
 
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3° Lugar - Ensaio
“O amor desromantizado em Lygia Fagundes Telles”, de Marcos Antonio Martiliano Silva
(E.E. Olga Cury; D.E. Santos; Santos)

O amor desromantizado em Lygia Fagundes Telles

Uma legítima função da arte é atuar no processo de humanização do indivíduo.

No caso específico da arte literária, é o mestre Antônio Candido (1982: p. 249) quem postula: “a literatura desenvolve em nós a quota de humanidade por nos tornar mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.”

Com efeito, ao colocar o leitor diante de situações da vida, amalgamadas na exemplaridade da estrutura literária, a literatura leva-o a mirar-se no espelho do seu próprio eu – ou dos seus próprios eus -, possibilitando desse modo uma peculiar sensibilidade à percepção de sua humanidade, ou seja, do conjunto de traços que o distinguem dos seres ditos irracionais.

É sob o ponto de vista do potencial humanizador da literatura que empreenderemos, neste ensaio, um breve estudo de alguns contos de Lygia Fagundes Telles, reunidos na coletânea Oito contos de amor e cujo ponto comum reside no fato de elegerem como eixo temático o sentimento amoroso.

À primeira vista, pode soar algo estranho escolher o amor – tema via-de-regra associado à irracionalidade do só-sentimento -, para a sondagem do potencial humanizador da produção de um escritor, dado que seria o exercício da razão, antes de tudo, o traço diferencial do ente humano.

Por outro lado, reduzir a humanidade dos seres aos objetivismos por vezes associados à razão, poderia sugerir uma mecanização tal que não muito longe os colocaria de outros seres não-humanos – as máquinas, por exemplo.

Nessa situação, superados os exageros do sentimentalismo romântico e, igualmente, os excessos objetivistas do realismo de gênese positivista, o desafio que se coloca ao escritor da modernidade é extremamente complexo: o alcance, na fatura literária, do ponto de equilíbrio entre a razão e a emoção no trato do universo humano que lhe serve de ponto-de-partida.

E Telles aceita o desafio. Desafio que a estimulará no decorrer de toda a sua já vasta obra, exemplarmente nos momentos em que elege o tema amoroso como eixo temático.

Sem receio de ter colado a si o estigma do sentimentalismo subjetivista, que os mais desavisados ainda teimam em associar à produção de autoria feminina, Telles enfrenta a complexidade do tema amoroso e nos mostra, pela via exemplar do discurso literário, que ainda temos muito a nos humanizar a partir dele.

Emancipação: outra palavra estranha, aos nossos ouvidos romanescos, quando associada ao amor. Afinal, ensinou-nos boa parte dos românticos de escola – ou foi isso que, por vezes, deduzimos de nossas sempre anacrônicas leituras deles – que amar, implicando num gesto de “entrega total” ao outro, pressuporia uma razoável dose de auto-anulação – em face do outro -, quando não de alienação – em face do próprio sentimento.

Neste ponto, registre-se uma advertência: as observações sobre o romantismo de escola, que hoje denominamos folhetinesco, não pretendem aqui desqualificá-lo, mas apenas indicar que, passados os entusiasmos iniciais com a proposição de um novo modo de relacionamento – no que aliás esse Romantismo cumpriu um papel revolucionário e fundamental no afinamento das relações afetivas -, não faz mais sentido o radicalismo a ele subjacente e cujo resultado é, conforme ressaltamos, uma razoável dose de alienação do indivíduo.

De qualquer modo, é preciso ressalvar o tom esquemático dessas observações, cuja inevitável conseqüência é o não dar conta das tantas nuanças entre os autores desse momento de extrema riqueza e complexidade de nossa produção literária.

Consideradas tais ressalvas, pensamos que o tratamento dado por Telles ao tema amoroso faz-se revolucionário na medida em que, na auto-projeção concomitante à leitura, saímos de seus textos não pretendendo uma compreensão ou pseudo-compreensão do outro, ou mesmo do próprio sentimento, ambos alçados para além de nós próprios – alienados, em síntese. Ao contrário, é a sondagem do outro, e do nosso sentimento por ele, que termina por nos dizer muito de nós próprios, ainda que a melhor compreensão de outro e sentimento seja também contemplada, dada a polivalência do foco de nossa autora.

Retomando a noção do sentimento amoroso como elemento emancipador de um ente tanto mais humano quanto mais equilibrado entre os pólos da razão e da emoção, podemos dizer que em Telles o amor é humanizador porque, se não se reduz a pretensiosas tentativas de definições objetivistas, por outro lado, também não se dilui no impalpável de um subjetivismo insondável, tornando sua mensagem impenetrável ao leitor. O que define uma peculiar estruturação desses Oito contos de amor, em que a configuração dos elementos narrativos se pauta por um jogo dialético entre a objetividade e a subjetividade, conforme demonstraremos adiante.

Por isso tudo, acreditamos, faz-se pertinente apontar em Telles um amor desromantizado, porque divorciado do elemento alienante subjacente ao tradicional amor romanesco, cuja natureza leva o amante a projetar-se tanto no outro – um outro ademais idealizado -, que nada ou quase nada acaba por restar de sua própria individualidade ou, mais ainda, de sua própria humanidade.

Desromantizado, advirta-se enfim, por outro lado, não quer indicar um tipo de desesperança no amor em nossa autora, mas apenas um redirecionamento do lirismo amoroso, cuja graça e “encanto” sem dúvida existe, e transborda de sua obra, mas de um modo completamente alheio aos arrebatamentos do romantismo folhetinesco, como esperamos demonstrar neste ensaio.


II

Dadas as limitações espaciais do texto ensaístico, dos vários elementos em jogo na fatura literária, reportaremo-nos, na apreciação de cada conto, apenas àqueles que correspondam mais de perto ao objetivo central deste ensaio, qual seja, demonstrar que, no trato do sentimento amoroso como eixo temático, acaba por configurar-se em Telles uma surpreendente visão humanizadora e emancipatória do amor. Pelas mesmas razões, as exemplificações (citações) serão limitadas ao mínimo necessário para a ilustração das propostas de leitura a serem apresentadas.

Os contos serão analisados em grupos de dois, sendo que o critério de agrupamento foi a demarcação das semelhanças entre os focos narrativos e/ou entre as protagonistas. Assim, analisaremos, respectivamente, contos narrados ou protagonizados por duas tenras adolescentes; por duas mulheres em estado de devaneio (uma pelo idealismo romanesco e outra arrebatada por um sonho); por dois homens maduros, ambos em crise diante das companheiras mais jovens e; por duas quadragenárias em processo de compreensão de experiências amorosas.
Estabelecido isso, vamos enfim aos Oito contos de amor.


III

Como em todos os contos do livro, não há no primeiro deles, “As cerejas”, a clássica linearidade narrativa; a matéria literária é relatada num vai-e-vem entre o tempo da enunciação e o do enunciado, mesclando-se ainda, em ambos, dados de um passado mais recente com os de um passado mais longínquo.

Nessa direção, as cerejas artificiais de um broche, “com sua vermelhidão de loucura” (TELLES: 2001, p. 15), enquanto elementos simbólicos do sentimento amoroso, atribuem coerência interna a passagens do conto que, numa leitura menos atenta, poderiam parecer deslocadas.

Se no amor está implicada uma razoável dose de loucura, passa a fazer sentido então que a própria estruturação narrativa do conto em foco obedeça a uma sintaxe própria, num jogo de idas e vindas cujo resultado é a verbalização de uma subjetividade, no caso, a da narradora-personagem.

Essa concepção do amor como loucura, ou da loucura como um dos aspectos do sentimento amoroso, reflete-se não só na protagonista, mas também naquela que será a sua primeira rival no amor e a um só tempo guia na travessia da adolescência para a maturidade, fase esta cujo início é marcado no conto quando, a duras penas, é obrigada a superar suas idealizações romanescas: a exótica “tia Olívia”.

Na sua aparente futilidade – atributo que em tantas outras tramas possivelmente a colocaria num patamar secundário –, tia Olívia parece simbolizar a própria maturidade amorosa. E se a maturidade no amor implica também em reconhecer o seu componente de loucura, de imprecisão, como sugere o conto, esta personagem, na certeira pena de Telles, ganha contornos de toda uma sutil imprecisão; o tom interrogativo e pontuado de reticências, característico de suas poucas falas e evocativo de um certo ar de constante devaneio, a torna impassível de um completo desvendamento, como o próprio sentimento amoroso.

Num conto recheado de oscilações do fluxo narrativo, funcionam as mesmas cerejas como guia do leitor, que intui a conclusão do aprendizado da protagonista justamente quando, ao despedir-se de tia Olívia, numa passagem repleta da rica simbologia de Telles, é por ela presenteada com o acessório feito das cerejas artificiais. O que patenteia decisivamente a importância do papel daquela personagem, que na sua evanescência parece sugerir que o amor, enfim, ainda que devamos buscar compreendê-lo, como o faz a protagonista por meio do relato de sua experiência, será sempre irredutível a definições acabadas, como ademais o próprio ser humano que o gestou.

Estruturação semelhante tem “Herbarium”, cuja narrativa consiste no auto-relato do aprendizado amoroso de uma adolescente, que a seu turno terá como guia desse aprendizado, e ao mesmo tempo como objeto imediato de seu amor, também um parente em visita a sua igualmente bucólica morada. Aqui, o jogo com os pólos da inocência/maturidade parece constituir a viga mestra da ótica sobre o sentimento amoroso nele em jogo.

Assim, se uma virginal puerilidade é aparentemente a tônica do universo no qual se insere a protagonista, por outro lado, há pinceladas no conto sugestivas de que ela possa não ser tão casta como aparenta. Um exemplo: em meio ao verde característico do mundo campestre que habita, nossa heroína, relatando um passeio pela floresta com seu visitante, refere-se a uma formiga vermelha e, em seguida, sucedem-se na narrativa várias frases à primeira vista desconexas, mas que, no todo, se não sugerem a consumação cabal da relação sexual entre ela e seu visitante, pincelam de todo modo um momento de latente eroticidade. Nessa direção, entre outros símbolos, a cor vermelha da formiga converte-se em sugestiva metaforização da perda da castidade.

Como em “As cerejas”, também agora a travessia adolescência-maturidade será ritualmente marcada: ao partir seu especial visitante, mesmo que em companhia de outra, nossa heroína irá presenteá-lo com uma folha rara – era pesquisador botânico -, que até então mantivera escondida. Nesse momento, parece desprender-se, “sem remorso”, como ela mesma verbaliza, da adolescência e, com ela, da sua concepção romanesca de amor, porventura simbolizada na folha que entrega ao seu mentor na iniciação amorosa.


IV

Se as adolescentes protagonistas dos contos anteriores parecem ter realizado a travessia para a maturidade, ao entender que a concretização do amor não corresponde necessariamente às suas idealizações romanescas, o mesmo não ocorre com a jovenzinha do conto seguinte, “Pomba enamorada ou uma história de amor”.

O uso do termo história no subtítulo do conto funciona, assim, como uma espécie de informação antecipada ao leitor da personalidade da protagonista, cuja existência se pauta por ficções romanescas.

As bases dessa personalidade profundamente ficcionalizada ou, melhor, “folhetinizada” – se for permitido o neologismo -, o leitor vai conhecendo no decorrer do conto: é assídua expectadora de tele-novelas e leitora voraz de folhetins.

Curiosamente, porém, é no trato com os santos que aflora todo um inusitado empirismo da personagem. Na maior “sem-cerimônia”, como diria um atento observador do brasileiro, a protagonista de “Pomba enamorada”, tendo acendido treze velas na “Igreja dos Enforcados”, quando chegou em casa pegou o Santo Antônio de gesso, tirou o filhinho dele, escondeu-o na gaveta da cômoda e avisou que enquanto Antenor não a procurasse, não o soltava nem lhe devolvia o menino (p. 28).

Entretanto, se nos pareceu tão pragmática a sua franqueza e sem-cerimônia diante do santo, por outro lado, percebemos tal postura não se estender para além do trato com as coisas supra-terrenas.

Nesse sentido, numa demonstração máxima do platonismo que lhe impregna a personalidade, nossa heroína chega a recusar mesmo o que seria o estágio mais concreto da relação amorosa – o erotismo; quando do envio de diversas cartas ao amado, que escrevera sob a picante influência de um amigo, resolve postar apenas as que lhe pareceram mais adequadas a uma moça virgem, rasgando as eróticas. Folhetinescamente romântica, importa-lhe mais o sentimento do que o objeto dele.

Como contraponto ao platonismo da heroína, temos o caráter eminentemente pragmático do objeto de seu amor. Caráter em cuja configuração entra novamente em jogo a maestria literária de Telles: se não lhe é possível demorar o foco narrativo numa personagem secundária, dadas as limitações espaciais do conto, fornece então ao leitor subsídios para que esboce ele próprio um nítido retrato dela.

Ao contrário da volátil protagonista, de quem não temos nenhuma referência evocativa pautada na realidade concreta – não sabemos nem mesmo seu verdadeiro nome! -, seu amado tem nome (Antenor) e endereço onde possa ser encontrado – uma oficina na “Praça Marechal Deodoro”, uma “loja de acessórios na Guaianazes esquina com a General Osório”, quando empregado e, finalmente, em sua própria oficina, na “São João”. (TELLES: 2001, p. 25-26)

Com isso, Telles vai fornecendo ao leitor subsídios para que, pela via da comparação, possa ele deparar-se com outro aspecto do sentimento amoroso: o desencontro entre as aspirações romanescas daqueles que o idealizam excessivamente e a impossibilidade de sua concretização nesses termos.

Desencontro que, no caso da história de “Pomba enamorada”, dá-se pela incapacidade da protagonista de desromantizar sua concepção de amor, único expediente que a tornaria capaz de compreender, definitivamente, que não existe para além de Antenor mais ou menos do que aquilo que nele se mostra; que a humanidade do amado é muito menos nobre e elevada do que o plano e estereotipado estofo das personagens do seu mundo de folhetins e; enfim, a partir da compreensão do outro, a perceber e valorizar a própria humanidade.

Já em outro dos Oito contos de amor, o mundo dos sonhos exercerá não um papel mascarador da realidade mas, ao contrário, é a partir dele que a protagonista alcançará melhor compreensão dos aspectos da sua vida ligados ao sentimento amoroso. Sugestivo dessa hipótese é o próprio título: “O encontro”.

Contrariamente ao que ocorre em “Herbarium”, todo o cenário do conto em foco está impregnado de símbolos de potencialidade erótica – “penhascos altos e retos”, “folhas enrijecidas”, “pedra fendida ao meio”, “folha avermelhada” -, sendo que o verde, porventura simbólico da adolescência – é referido como algo ainda presente, mas “pálido e opaco” (op. cit.: p. 70).

Nessa possível conotação de eroticidade, enquanto componente indispensável no aprendizado que os amantes fazem um do outro e cada um de si mesmo, o universo narrativo de “O encontro” sugere ao leitor que, dada a sua complexidade, o sentimento amoroso não pode ter sua compreensão limitada ao aparente objetivismo da vigília ou a qualquer tipo de racionalismo isolado.

Nesse sentido, Telles redireciona nossa compreensão do importante elemento onírico do amor romântico, sugerindo-nos que, se o que temos em mira é a compreensão e refinamento da nossa própria humanidade, no delicado exercício do sentimento amoroso por um outro, mesmo nosso sonho e por extensão outras manifestações subjetivas exercerão aí um papel, passando de lugares de distorção da realidade para peculiares focos de luz sobre profundos aspectos dela.


V

Num universo ficcional dominado por bem acabadas protagonistas femininas, em dois dos Oito contos de amor o primeiro plano da cena será ocupado por personagens masculinas.

Ambos casados com mulheres mais novas, os protagonistas de “As pérolas” e “A chave” se debatem com questões implicadas nas relações em que a excessiva diferença etária acarreta desencontros os mais insuspeitados.

Longe das soluções simplistas do pensamento machista convencional, o comportamento e reflexões de nossas personagens trazem em seu bojo toda a complexidade das relações modernas, cujos princípios de liberdade mútua nem sempre encontram ressonância na formação média dos indivíduos, ainda calcada mais ou menos nos padrões possessivos das sociedades de gênese patriarcal.

Assim, a sempre desconfiança na autenticidade do sentimento amoroso do outro, que nos acompanha desde as primeiras frustrações do adolescente mundo romanesco, tornam os protagonistas em foco incapazes de decantarem, em meio às diferenças decorrentes de suas faixas etárias em relação às parceiras – diferenças que a franqueza da pena de Telles impede de camuflar -, os laivos de um amor ainda vivo.

É o que, surpreendendo-nos leitores, pondera o narrador, ante as desconfianças do protagonista de “As pérolas”: “Era verdade, ela preferia ficar, ela ainda o amava. Um amor meio esgarçado, sem alegria. Mas ainda amor.” (op. cit: p. 34).

Do mesmo modo, o protagonista de “A chave” não consegue confiar nos desejos, expressos por sua companheira, de que ele a acompanhasse ao baile. Entretanto, uma igual desconfiança nas soluções autoritárias os impede de verbalizarem suas inseguranças ante as companheiras.

Nessa situação, narrativas de poucos diálogos, ambos os contos ora em análise constituem-se essencialmente de pensamentos não-verbalizados entre as personagens. Decorrendo daí falsas concessões, rancorosos elogios e dissimuladas indiferenças que, sabe o leitor, terminam por dissolver toda a cumplicidade essencial a uma relação conjugal.

Todavia, nesse desencontrado processo de educação sentimental por que passam os seres de todas as idades, a ótica de Telles não deixa de vislumbrar a esperança num afinamento de humanidades dela decorrente.

Assim, na mira de uma visão emancipatória do amor, nossos protagonistas parecem compreender um princípio fundamental das convivências amadurecidas: a melhor maneira de trazer o outro para si é deixá-lo encontrar-se antes a si mesmo, exercer a própria humanidade, conceder-lhe liberdade enfim. É o que fica patente quando, em “As pérolas”, o protagonista devolve à companheira o colar que havia escondido, levado pelo receio egoísta de imaginá-la ainda mais bela na sua ausência, já que não poderia acompanhá-la à festa.

Simbolicamente, a entrega do acessório acima referida marca a devolução à outra de uma parte da própria individualidade dela, que nossa protagonista, elegantemente, parece perceber de alguma maneira essencial ao sentimento que ainda nutria por ela e que, nesse momento, ganha o vigor da liberdade.

Em “A chave”, essa mesma compreensão cristaliza-se no momento da também simbólica entrega da chave, por parte do protagonista, à ex-companheira, cujo respeito à sua liberdade parece, enfim, ter sido percebido como a grande e insuspeitada prova de amor de sua vida. O desencontrado relacionamento com a parceira atual afigura-se a ele, então, diminuído diante do amor emancipatório anterior, que só a distância dos anos e a maturidade, enfim alcançada, o colocariam em condições de vislumbrar.

VI

A mencionada busca do equilíbrio entre os pólos da razão e da emoção, no trato com o sentimento amoroso, manifesta-se exemplarmente no foco narrativo de “Apenas um saxofone”.

Embora explicite sua intenção de manter-se “lúcida” enquanto rememora o passado, acompanha a narradora-protagonista uma habitual garrafa de uísque, que iria beber “bem devagarinho para não ficar de porre...” (op. cit., p.61).

Nessa peculiar condição de lucidez regada a doses de uísque, nossa narradora, do alto de seus confessos 44 anos e cinco meses, parece enunciar a perspectiva adequada a uma retrospectiva amorosa e que, acreditamos, está na gênese da visão de Telles sobre o tema. Trata-se da já referida busca de equilíbrio entre a racionalidade e a emotividade.

Completando o cenário, a personagem-narradora posta-se numa sala, dentre as tantas de sua abastada casa, que considera sua própria extensão, e explica: “É que fomos escurecendo juntas, a sala e eu. Uma sala de uma burrice atroz, afetada, pretensiosa.” (op. cit.: p. 61).

Neste ambiente, o requinte da pena de Telles determinará ainda a luminosidade em consonância à condição da protagonista. Num sutil jogo de luz e de sombras que evoca a imprecisão do ambiente de uma tela barroca, com predomínio das sombras, mesmo o único foco de claridade da sala não chega a destoar do clima geral de obscuridade, na medida em que o mesmo é por ela comparado não à vida, mas à morte: “Tudo já escureceu na sala menos o vestido do retrato, lá está ele diáfano como a mortalha de um ectoplasma...”. (op. cit., p. 63)

Na verdade, o andamento geral de “Apenas um saxofone” faz o leitor ter a impressão de estar diante da confissão de um fantasma, como se à narradora postada na sala se superpusesse a sua transfigurada fisionomia pintada no retrato. Tal impressão é reforçada quando, em meio à fragmentada narração, nossa protagonista resolve “identificar-se”: “Meu nome é Luisiana ... Há muitos anos mandei embora o meu amado e desde então morri.” (ibid.)

De qualquer modo, se não fisicamente, não resta dúvidas de que se processou uma operação de mortificação da subjetividade da protagonista, já que sua auto-percepção atual não se dá desvinculada dos objetos que a rodeiam.

Nessa situação, o amor que rememora passa a figurar como a gênese de sua humanidade agora esfacelada, na medida em que o objeto desse amor, para além dos atributos físicos que trariam a ela abundância material, parecia amá-la pelo conjunto de sua personalidade, dos aspectos que a delineavam em sua peculiaridade humana.

Compreendendo isso, nossa protagonista como que oferece o “seu reino” por apenas um saxofone, objeto por meio do qual, acredita, poderia trazer de volta, via memória, ainda uma centelha do amor perdido, mas suficiente para lançar um momentâneo facho de luz nas trevas do não-amor a que relegara sua existência.

A mesma delicadeza no trato com o sentimento amoroso, não observada pela protagonista de “Apenas um saxofone”, será eixo da densa reflexão sobre o assunto empreendida no último conto do livro, curiosamente o menor de todos e a um só tempo o de maior complexidade no trato da questão.

A uma bolha de sabão, que “é mesmo imprecisa, nem sólida nem líquida, nem realidade nem sonho”, a narradora-protagonista de “A estrutura da bolha de sabão” compara a vivência amorosa que rememora - “um amor de transparências e membranas, condenado à ruptura.” (TELLES: 2001, p. 78-79, respect.).

Ao mesmo tempo em que acompanha o amante nas suas indagações sobre uma possível estrutura da bolha de sabão – o inusitado objeto de sua atividade de pesquisador-, nossa protagonista vai estendendo tais reflexões ao próprio amor que sente por ele.

Nessa direção, no amor, percebe a narradora, há que se observar a postura semelhante à de uma criança encantada diante de uma bolha de sabão bem engendrada: “envolvimento e fuga”. Envolvimento, para apreender melhor a sua multifacetada beleza; fuga, para evitar a sua dissolução, resultante de uma aproximação deveras invasiva.

Essa concepção de um amor ao mesmo tempo corpóreo e intocável, como uma bolha de sabão, determina toda uma peculiar linguagem entre os amantes. A linearidade dos diálogos é, assim, esporadicamente suspensa por jogos de palavras aparentemente desconexas, como se intuíssem que, das pretensões objetivistas da linguagem convencional, pudesse resultar um esfacelamento de suas subjetividades; ao mesmo tempo em que se envolvem pela linguagem, fogem um do outro pelos descaminhos que exploram no bojo dessa mesma linguagem.

A própria coerência da estruturação narrativa, o leitor a vislumbra quando lança mão desse mesmo princípio de envolvimento e fuga em jogo na multifacetada fatura literária de Telles, que assim faz lembrar os mil olhos da bolha de sabão tocada pela luminosidade; comungando desse jogo, o leitor é levado a envolver-se mas, a um só tempo, a fugir das conclusões simplistas.

Resultante das reflexões empreendidas neste derradeiro dos Oito contos de amor, como uma das tantas possibilidades que abre, afigura-se ao leitor a impressão de que não há que se cogitar em uma estrutura do sentimento amoroso. Afinal, longe da generalização esquemática implicada numa conceituação inicial do termo estrutura, o amor terá tantos rostos quantos forem os indivíduos que se deixarem tocar por ele, que por ele se deixarem humanizar.

VII

“Quase peço desculpas ao leitor por não ser mais otimista...”, declara Telles na entrevista transcrita como prefácio a esses Oito contos de amor. Entretanto, não se leia aí uma desesperança fundamental ou característica; trata-se, antes, da postura naturalmente decorrente de uma ótica que, para além dos fantasiosismos da produção folhetinesca, busca através da arte fornecer elementos para uma lúcida compreensão das coisas humanas, ressalvando-se que, nesse caso, a lucidez não se resume a uma mera equacionalização racionalista das coisas, conforme procuramos demonstrar neste ensaio.

Nessa direção, numa outra entrevista, a mesma autora declara que “um escritor desesperado é uma contradição” (LUCENA: 2002, p. 5), o que motivaria a criação literária então, desse ponto de vista, seria a esperança de que, por meio dela, pudesse o escritor apresentar alguma contribuição à emancipação dos indivíduos.

Nesse caso, aliás, poderíamos comparar a atividade literária à atividade docente, já que tão contraditório quanto um artista desesperado seria um educador desesperado, na medida em que o ofício deste se justifica pela crença de que, em não nascendo os seres acabados, formados, podem contudo se refinarem desde que submetidos a um efetivo trabalho educativo.

Ao oferecer ao leitor subsídios para a compreensão de aspectos ligados ao sentimento amoroso e, ao mesmo tempo, ao negar-se a impor a ele soluções acabadas, Telles deixa entrever ainda a sua própria concepção de leitor.

Nesse sentido, para nossa autora, o leitor não se reduziria a um ente que, numa ótica idealizada, estaria pronto e “à altura” de compartilhar de suas próprias convicções. Assim, está em contínua vigilância: quando a narrativa parece caminhar para as soluções fechadas, eis que interfere uma perspectiva cuja mira é a do equilíbrio entre subjetividade e objetividade, entre razão e emoção.

Do ponto de vista de uma racionalidade emancipadora – já que até agora referimos tanto o potencial humanizador do exercício da subjetividade, emotiva ou onírica -, a linguagem literária se afigura em Telles como um elemento de organização do caos interior, precedente às palavras e cuja superação, via linguagem, é manifestação a um só tempo elementar e plena da humanidade dos seres.

Cônscia dessa tarefa do escritor no seu artesanato da linguagem, nossa autora postula:

A criação literária. E o escritor que pode ser louco mas não enlouquece o leitor, ao contrário, pode até desviá-lo da sua loucura. O escritor que pode ser corrompido mas não corrompe. Que pode ser solitário e triste mas ainda assim vai alimentar o sonho daquele que está na solidão.(TELLES: 2001, p. 8)

Nos contos aqui analisados, assistimos com efeito ao embate de criaturas que, irredutíveis aos objetivismos padronizadores da sociedade em que se inserem, ainda que mais ou menos sujeitos a seus produtos, encontram por outro lado, na organização permitida pela linguagem, uma efetiva possibilidade de compreensão de aspectos fundamentais de sua condição humana.

O resultado disso, conhecemos na leitura desses contos, é a emancipação do leitor, desse modo livre para, juntando os elementos do que lhe parece o Bem e do que lhe parece o Mal em sua narrativa, e projetando-os para sua vivência, erigir por si mesmo possibilidades interpretativas acerca do sentimento amoroso.

Se estamos pensando em uma concepção emancipatória de amor, podemos então dizer, para finalizar, sem receio de equívocos, que esses oito contos são, antes de tudo, oito grandes provas do amor de Lygia Fagundes Telles pelo leitor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CANDIDO, Antônio. O direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas cidades, 1982

CARROZZA, Elza. Esse incrível jogo do amor. São Paulo: Hucitec, 1992

FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. 44 ed. Rio de Janeiro, Record, 2001

GOLDMANN, Lucien. Estrutura: realidade humana e conceito metodológico. In: MACKSEY, R. (org.). A controvérsia estruturalista. São Paulo: Cultrix, 1972

HOBSBAWN, Erich. A era dos extremos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977

LUCENA, Suênio Campos de. Lygia Fagundes Telles – a pessoa e a escritora. Prefácio a TELLES, Lygia Fagundes. Durante aquele estranho chá. Perdidos e achados. São Paulo: Rocco, 2002

TELLES, Lygia Fagundes. As pérolas. A chave. Apenas um saxofone. In: ___ Antes do baile verde. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986

___. Pomba enamorada ou uma história de amor. Herbarium. In: ___. Seminário dos ratos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984

___. O encontro. In: ___. Mistérios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987

___. A estrutura da bolha de sabão. In: ___. A estrutura da bolha de sabão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991

___. As cerejas. In: ___. O jardim selvagem. Rio de Janeiro: José Olympio/Civilização Brasileira, 1974

____. Oito contos de amor. 4 ed. São Paulo: Ática, 2001

VÁRIOS. Cadernos de Literatura Brasileira: Lygia Fagundes Telles. n. 5, mar.1998 (Publicação do Instituto Moreira Salles)

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