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Quinta-Feira , 25 de Abril de 2024
 
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CRÔNICAS DA SEMANA


Para subsidiar as diversas fases da Olimpíada de Língua Portuguesa e manter sempre viva a discussão sobre temas literários, este espaço será dedicado a Crônicas, de ontem e de hoje, cujos autores trouxeram riqueza e sabor para nossa literatura.

São crônicas que registram o circunstancial, o efêmero, que recriam com engenho e arte o real, que exploram a função poética da linguagem, que imprimem leveza ao discurso narrativo, que expõem o narrador, que revelam e valorizam, na visão do autor, a crítica de um momento histórico, que atenuam o vínculo de temporalidade e eternizam o texto.

“... a crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas. Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas. Ela é amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais diretas e também nas suas formas mais fantásticas....”

Antonio Cândido, 1980


O Nascimento da Crônica
Machado de Assis

"Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e Ia glace est rompue ; está começada a crônica.

Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem.

Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuí­ dos pelos doze meses do ano.

Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dizia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopada do que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.

Que eu, sabedor ou conjeturados de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma triviali­ dade; e contudo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol, é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sem pre mais feliz do que outra.

Não afirmo sem prova.

Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: - Que calor! que sol! é de rachar passarinho! é de fazer um homem doido!

Íamos em carros! apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, e daí às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos; lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-dia­bos, durante todas as horas quentes do dia?"

Texto datado de 1 de novembro de 1877.
ASSIS, Machado de. Crônicas escolhidas. São Paulo: Ática, 1994. p.3-15.

Extraído de: Crônica na sala de aula: material de apoio ao professor. São Paulo: Itaú Cultural, 2004.p.43-44.



Literatura de Jornal ( O que é a Crônica)
Artur da Távola

A crônica é a expressão das contradições da vida e da pessoa do escritor ou jornalista, exposto que fica, com suas vísceras existenciais à mostra no açougue da vida, penduradas à espera do consumo de outros como ele, enrustidos, talvez, na manifestação dos sentimentos, idéias, verdades e pensamentos.

Já escrevi mais de cinco mil crônicas. E a uns estudantes que me pediram uma síntese sobre o gênero, respondi o seguinte:

É o samba da literatura. É ao mesmo tempo, a poesia, o ensaio, a crítica, o registro histórico, o factual, o apontamento, a filosofia, o flagrante, o mini conto, o retrato, o testemunho, a opinião, o depoimento, a análise, a interpretação, o humor. Tudo isso ela contém, a polivalente. Direta a simples como um samba. Profunda como a sinfonia.

É compacta, rápida, direta, aguda, penetrante, instantânea (dissolve-se com o uso diário), biodegradável, sumindo sem poluir ou denegrir, oxalá perfume, saudade e algum brilho de vida no sorriso ou na lágrima do leitor.

A literatura do jornal. O jornalismo da literatura. É a pausa de subjetividade, ao lado da objetividade da informação do restante do jornal. Um instante de reflexão, diante da opinião peremptória do editorial.

É tímida e perseverante. Não se engalana com os grandes edifícios da literatura, mas pode conter alguns de seus melhores momentos. Não se enfeita com os altos sistemas de pensamento, mas pode conter a filosofia do cotidiano e da vida que passa. Não se empavona com a erudição dos tratados, mas pode trazer agudeza de percepção dos bons ensaios.

Para ser boa, não deve ser mastigada. Deve dissolver-se na boca do leitor, deixando um sabor de vivência comum. Deve parecer que já estava escrita há muito tempo na sensibilidade de quem a lê e foi apenas lembrada ou ativada pelo escritor/jornalista que lhe deu forma.

Deve ser rápida como a percepção e demorada como a recordação. Verdadeira como um poente e esperançosa como a aurora. Irreverente como um carioca. Suave como pele de mulher amada e irritada como uma criança com fome.

Terna como a amamentação e insegura como toda primeira vez. Religiosa como a portadora do mistério e agnóstica como um livre pensador. A crônica nos obriga à síntese, à capacidade de condensar emoções em parágrafos-barragem. Faz-nos prosseguir, mesmo quando nos sentimos repetitivos. É, pois, a expressão jornalístico-literária da necessidade de não desistir de ser e sentir. A crônica é o samba da literatura.

Jornal O Dia, 27 de junho de 2001

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