Pessoa
– pessoas *
0 FENÔMENO DA HETERONÍMIA
"Criei em mim várias personalidades.
Crio personalidades constantemente. Cada sonho
meu é imediatamente, logo ao aparecer
sonhado, encarnado numa outra pessoa, que passa
a sonhá-lo, e eu não.
Para criar, destruí-me; tanto me exteriorizei
dentro de mim, que dentro de mim não
existo senão exteriormente. Sou a cena
viva onde passam vários atores representando
várias peças."
(Do "Livro do desassossego")
A mais rica, densa e intrigante faceta da obra
de Fernando Pessoa diz respeito ao fenômeno
da heteronímia, ou seja, como o próprio
autor afirma, atingindo o grau mais elevado
da escala poética, "teremos um poeta
que seja vários poetas". E a esses
"vários poetas" Fernando Pessoa
deu uma biografia, caracteres físicos,
traços de personalidade, formação
cultural, profissão, ideologia. Assim
é, que "nasceram" os poetas
Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro
de Campos - os heterônimos perfeitos -,
além de vários outros semi-heterônimos.
É importante não confundir pseudônimo
com heterônimo. 0 pseudônimo é
um nome falso, sob o qual alguém se oculta
por uma circunstância qualquer; o heterônimo
vai além: é um outro nome, uma
outra personalidade, uma outra individualidade,
diferente, portanto, do criador. Daí
a distinção feita por Fernando
Pessoa entre os heterônimos perfeitos
e os semi-heterônimos; para o poeta:
"Nos autores das Ficções
do interlúdio ( Caieiro, Reis e Campos)
não são só as idéias
e os sentimentos que se distinguem dos meus:
a mesma técnica da composição,
o mesmo estilo, é diferente do meu. Aí
cada personagem é criada integralmente
diferente, e não apenas diferentemente
pensada."
Já em outro momento, ao falar de Bernardo
Soares, um semi-heterônimo, assim se manifesta:
"É um serei-heterônimo porque,
não sendo a personalidade a minha, é,
não diferente da minha, mas uma simples
mutilação dela. Sou eu menos o
raciocínio e a afetividade."
Para compreender melhor a diferença entre
um heterônimo pleno e um semi-heterônimo,
leia as palavras do próprio Pessoa: "Bernardo
Soares aparece sempre que estou cansado ou sonolento".
Isto é, em estado de sonolência,
você ainda é você mesmo,
mas com evidentes limitações de
raciocínio e uma ligeira despersonalização,
fruto do torpor característico.
Muito se discute (e muito se discutirá,
ainda) sobre o porquê desses heterônimos,
quais as causas que os originaram, o que pretendia
Fernando Pessoa com essa multiplicidade. Para
os propósitos deste livro, é suficiente
apontar algumas causas reconhecidas pelo próprio
poeta e que se encontram dispersas por sua obra:
1) a consciência da pluralidade, as várias
personalidades vividas pelo poeta em seu mundo
interior:
"Sê plural como o universo! “
"Sinto-me múltiplo. Sou como um
quarto com inúmeros espelhos fantásticos
que torcem para reflexões falsas uma
única anterior realidade que não
está em nenhuma e está em todas."
"A cada personalidade mais demorada, que
o autor destes livros conseguiu viver dentro
de si, ele deu uma índole expressiva,
e fez dessa personalidade um autor, com um livro,
ou livros, com as idéias, as emoções,
e a arte dos quais, ele o autor real, nada tem."
2) a tentativa de representar a multifacetada
vida portuguesa: "Sendo nós portugueses,
convém saber o que é que somos.
0 bom português é várias
pessoas.
Nunca me sinto tão portuguesmente eu
como quando me sinto diferente de mim - Alberto
Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos,
Fernando Pessoa, e quantos mais haja havidos
ou por haver."
3) a tentativa de converter-se em toda uma literatura:
"Com uma tal falta de literatura, como
há hoje, que pode um homem de gênio
fazer senão converter-se, ele só,
em uma literatura? Com uma tal falta de gente
coexistível, como há hoje, que
pode um honrem de sensibilidade fazer senão
inventar os seus amigos, ou quando menos, os
seus companheiros de espírito?"
4) Fernando Pessoa era, essencialmente, um
poeta dramático:
"0 ponto central da minha personalidade
como artista é que sou um poeta dramático;
tenho continuamente, em tudo quanto escrevo,
a exaltação íntima do poeta
e a despersonalização do dramaturgo.
Vôo outro - eis tudo."
"FICÇOES DO INTERLÚDIO"
Analisando o sentido do título que Fernando
Pessoa escolheu para grande parte de sua obra
heteronímica, temos de observar o significado
amplo das palavras ficções e interlúdio.
A palavra ficção vem do latim
fictionem e significa 'ato ou efeito de fingir,
de simular'. É o produto da imaginação,
da invenção.
Interlúdio, por sua vez, é formada
pelo prefixo inter ('entre') mais o radical
lúdio (do latim lúdere, 'brincar',
'divertir', 'jogar'). Tomada como um todo, a
palavra interlúdio indica o jogo interno,
a brincadeira recíproca, o brincar consigo
mesmo. Na linguagem teatral, o interlúdio
é o entreato, ou seja, a pequena cena
ou trecho musical apresentada entre os atos
de uma peça.
Chamamos a atenção para o fato
de esse título evidenciar a proposta
dramática (no sentido teatral do termo)
de Fernando Pessoa, cujos heterônimos
são personagens muito bem-acabados de
uma grande peça poética.
Só mesmo um poeta dramático poderia
realizar, formalmente, o vasto projeto literário
de Fernando Pessoa. Sobre a despersonalização
do dramaturgo, é fundamental a leitura
do texto que tem servido como nota introdutória
às "Ficções do interlúdio":
Nota preliminar
"0 primeiro grau da poesia lírica
é aquele em que o poeta, concentrado
no seu sentimento, exprime esse sentimento.
Se ele, porém, for uma criatura de sentimentos
variáveis e vários, exprimirá
como que uma multiplicidade de personagens,
unificadas somente pelo temperamento e pelo
estilo. Um passo mais, na escala poética,
e temos o poeta que é uma criatura de
sentimentos vários e fictícios,
mais imaginativo do que sentimental, e vivendo
cada estado de alma antes pela inteligência
que pela emoção. Este poeta exprimir-se-á
como uma multiplicidade de personagens, unificadas,
não já pelo temperamento e o estilo,
pois que o temperamento está substituído
pela imaginação, e o sentimento
pela inteligência, mas tão-somente
pelo simples estilo. Outro passo, na mesma escala
de despersonalização, ou seja,
de imaginação, e temos o poeta
que em cada um dos seus estados mentais vários
se integra de tal modo nele que de todo se despersonaliza,
de sorte que, vivendo analiticamente esse estado
da alma, faz dele como que a expressão
de um outro personagem, e, sendo assim, o mesmo
estilo tende a variar. Dê-se o passo final,
e teremos um poeta que seja vários poetas,
um poeta dramático escrevendo em poesia
lírica. Cada grupo de estados de alma
mais aproximados insensivelmente se tornará
uma personagem, com estilo próprio, com
sentimentos porventura diferentes, até
opostos, aos típicos do poeta na sua
pessoa viva. (...)
Por qualquer motivo temperamental que me não
proponho analisar, nem importa que analise,
construí dentro de mim várias
personagens distintas entre si e de mim, personagens
essas a que atribuí poemas vários
que não são como eu, nos meus
sentimentos e idéias, os escreveria.
Assim têm estes poemas de Caeiro, os de
Ricardo Reis e os de Álvaro de Campos
que ser considerados. Não há que
buscar em quaisquer deles idéias ou sentimentos
meus, pois muitos deles exprimem idéias
que não aceito, sentimentos que nunca
tive. Há simplesmente que os ler como
estão, que é aliás como
se deve ler."
Como você percebeu, Fernando Pessoa fala-nos
sobre o processo de despersonalização
do poeta, estabelecendo uma escala de quatro
graus:
1º) a produção poética
é unificada pelo temperamento e estilo,
mesmo que exprima vários sentimentos;
2°) o temperamento varia, o estilo permanece
único;
3°) o estilo varia, o poeta é único;
4°) o poeta se multiplica em outros poetas,
"um poeta dramático escrevendo em
poesia lírica".
Nesse último grau de escala de despersonalização
está, por exemplo, o autor de teatro
(Pessoa cita Shakespeare), que cria personagens
que pensam, agem, defendem suas idéias,
enfim, têm uma vida própria, que
não pode ser confundida com a do autor.
A CRIAÇAO DOS HETERÔNIMOS
Para entendermos melhor esse fenômeno
da heteronímia e, assim, penetrarmos
no mundo de Alberto Caeiro, Álvaro de
Campos e Ricardo Reis, transcrevemos trechos
de uma carta enviada por Fernando Pessoa a seu
amigo e crítico literário Adolfo
Casais Monteiro, datada de 13 de janeiro de
1935. Nessa carta, o próprio Fernando
Pessoa nos conta a origem dos heterônimos,
bem como as características de cada um;
acreditamos que, apesar de um pouco extensa,
sua leitura é fundamental:
"Passo agora a responder a responder à
sua pergunta sobre a gênese dos meus heterônimos.
Vou ver se consigo responder-lhe completamente.
Começo pela parte psiquiátrica.
A origem dos meus heterônimos é
o fundo traço de histeria que existe
em mim. Não sei se sou simplesmente histérico,
se sou, mais propriamente, um histero-neurastênico.
Tendo para esta segunda hipótese, porque
há em mim fenômenos de abulia que
a histeria, propriamente dita, não enquadra
no registro dos seus sintomas. Seja como for,
a origem mental dos meus heterônimos está
na minha tendência orgânica e constante
para a despersonalização e para
a simulação. (...)
Vou agora fazer-lhe a história direta
dos meus heterônimos. Começo por
aqueles que morreram, e de alguns dos quais
já me não lembro - os que jazem
perdidos no passado remoto da minha infância
quase esquecida.
Desde criança que tive a tendência
para criar em meu torno um mundo fictício,
de me cercar de amigos e conhecidos que nunca
existiram. (Não sei, bem entendido, se
realmente não existiram, ou se sou eu
que não existo. Nestas coisas, como em
todas, não devemos ser dogmáticos.)
Desde que me conheço como sendo aquilo
a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente,
em figura, movimentos, caráter e história,
várias figuras irreais que eram para
mim tão visíveis e minhas como
as coisas daquilo a que chamamos, porventura
abusivamente, a vida real. (...)
Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu
primeiro heterônimo, ou, antes, o meu
primeiro conhecido inexistente - um certo Chevalier
de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia
cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não
inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte
da minha afeição que confina com
a saudade. (...)
Esta tendência para criar em torno de
mim um outro mundo, igual a este mas com outra
gente, nunca me saiu da imaginação.
Teve várias fases, entre as quais esta,
sucedida já em maioridade. Ocorria-me
um dito de espírito, absolutamente alheio,
por um motivo ou outro, a quem eu sou ou a quem
suponho que sou. Dizia-o imediatamente, espontaneamente,
como sendo de um certo amigo meu, cujo nome
inventava, cuja história acrescentava,
e cuja figura - cara, estatura, traje e gesto
- imediatamente eu via diante de mim. E assim
arranjei, e propaguei, vários amigos
e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda
hoje, a perto de trinta anos de distância,
oiço, sinto, vejo. Repito: oiço,
sinto, vejo... E tenho saudades deles.
((...) Basta de maçada para si, Casais
Monteiro! Vou entrar na gênese dos meus
heterônimos literários, que é
afinal o que V. quer saber. Em todo o caso,
o que vai dito acima dá-lhe a história
da mãe que os deu à luz.)
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode
ser grande), veio-me à idéia escrever
uns poemas de índole pagã. Esbocei
umas coisas em verso irregular (não no
estilo Álvaro de Campos, mas num estilo
de mais regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me,
contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato
da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha
nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me
um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro
- de inventar um poeta bucólico, de espécie
complicada, e apresentar-lho, já me não
lembro como, em qualquer espécie de realidade.
Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui.
Num dia em que finalmente desistira - foi em
8 de março de 1914 - acerquei-me de uma
cômoda alta, e, tomando um papel, comecei
a escrever, de pé, como escrevo sempre
que posso. E escrevi trinta e tantos poemas
a fio, numa espécie de êxtase cuja
natureza não conseguirei definir. Foi
o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei
ter outro assim. Abri com um título,
'0 guardador de rebanhos'. E o que se seguiu
foi o aparecimento de alguém em mim,
a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro.
Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em
mim o meu mestre. Foi essa a sensação
imediata que tive. E tanto assim que, escritos
que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente
peguei noutro papel e escrevi, a fio, também,
os seis poemas que constituem a 'Chuva oblíqua',
de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente...
Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro
a Fernando Pessoa ele só. Ou melhor,
foi a reação de Fernando Pessoa
contra a sua inexistência como Alberto
Caeiro.
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe
descobrir - instintiva e subconscientemente
- uns discípulos. Arranquei do seu falso
paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe
o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa
altura já o via. E, de repente, em derivação
oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente
um novo indivíduo. Num jato, e à
máquina de escrever, sem interrupção
nem emenda, surgiu a 'Ode triunfal' de Álvaro
de Campos - a Ode com esse nome e o homem com
o nome que tem. (...)
Mais uns apontamentos nesta matéria...
Eu vejo diante de mim, no espaço incolor
mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro,
Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí-lhes
as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em
1887 (não me lembro do dia e mês,
mas tenho-os algures), no Porto, é médico
e está presentemente no Brasil. Alberto
Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu
em Lisboa mas viveu quase toda a sua vida no
campo. Não teve profissão nem
educação quase alguma. Álvaro
de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de outubro
de 1890 (à 1:30 da tarde, diz-me o Ferreira
Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo
para essa hora, está certo). Este, como
sabe, é engenheiro naval (por Glasgow),
mas agora está aqui em Lisboa em inatividade.
Caeiro era de estatura média, e, embora
realmente frágil (morreu tuberculoso),
não parecia tão frágil
como era. Ricardo Reis é um pouco, mas
muito pouco, mais baixo, mais forte, mais seco.
Álvaro de Campos é alto (1,75
m de altura, mais dois centímetros do
que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se.
Cara raspada todos - o Caeiro, louro, sem cor,
olhos azuis; Reis, de um vago moreno mate; Campos,
entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu
português, cabelo, porém, liso
e normalmente apartado ao lado, monóculo.
Caeiro, como disse, não teve mais educação
que quase nenhuma-só instrução
primária; morreram-lhe cedo o pai e a
mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo
de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia
velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado
num colégio de jesuítas, é,
como disse, médico; vive no Brasil desde
1919, pois se expatriou espontaneamente por
ser monárquico, é um latmista
por educação alheia e um semi-helenista
por educação própria. Álvaro
de Campos teve uma educação vulgar
de liceu; depois foi mandado para a Escócia
estudar engenharia, primeiro mecânica
e depois naval. Numas férias fez a viagem
ao Oriente de onde resultou o 'Opiário'.
Ensinou-lhe o latim um tio beirão que
era padre.
Como escrevo em nome desses três?... Caeiro
por pura e inesperada inspiração,
sem saber ou sequer calcular que iria escrever.
Ricardo Reis depois de uma deliberação
abstrata, que subitamente se concretiza numa
ode. Campos quando sinto um súbito impulso
para escrever e não sei o quê.
((...) Caeiro escrevia mal o português,
Campos razoavelmente, mas com lapsos como dizer
'eu próprio' em vez de 'eu mesmo', etc.
Reis melhor do que eu, mas com um purismo que
considero exagerado. (...))"
Incrível, não?! Como diz o próprio
Fernando Pessoa na continuação
da carta, parece que estamos "em meio a
um manicômio". Mas, acrescentaríamos:
um manicômio extremamente sadio, lógico
e coerente. Difícil é acreditar
que esses heterônimos de fato não
existiram.
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(*) Extraído de:
DE NICOLA, José & INFANTE, Ulisses.
Pessoa – pessoas. In: ________. Fernando
Pessoa. São Paulo : Scipione, 1995. p.
20-25.