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Sexta-Feira , 02 de Maio de 2025
 
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Pessoa – pessoas *

 

0 FENÔMENO DA HETERONÍMIA

"Criei em mim várias personalidades. Crio personalidades constantemente. Cada sonho meu é imediatamente, logo ao aparecer sonhado, encarnado numa outra pessoa, que passa a sonhá-lo, e eu não.
Para criar, destruí-me; tanto me exteriorizei dentro de mim, que dentro de mim não existo senão exteriormente. Sou a cena viva onde passam vários atores representando várias peças."
(Do "Livro do desassossego")
A mais rica, densa e intrigante faceta da obra de Fernando Pessoa diz respeito ao fenômeno da heteronímia, ou seja, como o próprio autor afirma, atingindo o grau mais elevado da escala poética, "teremos um poeta que seja vários poetas". E a esses "vários poetas" Fernando Pessoa deu uma biografia, caracteres físicos, traços de personalidade, formação cultural, profissão, ideologia. Assim é, que "nasceram" os poetas Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos - os heterônimos perfeitos -, além de vários outros semi-heterônimos.
É importante não confundir pseudônimo com heterônimo. 0 pseudônimo é um nome falso, sob o qual alguém se oculta por uma circunstância qualquer; o heterônimo vai além: é um outro nome, uma outra personalidade, uma outra individualidade, diferente, portanto, do criador. Daí a distinção feita por Fernando Pessoa entre os heterônimos perfeitos e os semi-heterônimos; para o poeta:

"Nos autores das Ficções do interlúdio ( Caieiro, Reis e Campos) não são só as idéias e os sentimentos que se distinguem dos meus: a mesma técnica da composição, o mesmo estilo, é diferente do meu. Aí cada personagem é criada integralmente diferente, e não apenas diferentemente pensada."

Já em outro momento, ao falar de Bernardo Soares, um semi-heterônimo, assim se manifesta:
"É um serei-heterônimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afetividade."
Para compreender melhor a diferença entre um heterônimo pleno e um semi-heterônimo, leia as palavras do próprio Pessoa: "Bernardo Soares aparece sempre que estou cansado ou sonolento". Isto é, em estado de sonolência, você ainda é você mesmo, mas com evidentes limitações de raciocínio e uma ligeira despersonalização, fruto do torpor característico.
Muito se discute (e muito se discutirá, ainda) sobre o porquê desses heterônimos, quais as causas que os originaram, o que pretendia Fernando Pessoa com essa multiplicidade. Para os propósitos deste livro, é suficiente apontar algumas causas reconhecidas pelo próprio poeta e que se encontram dispersas por sua obra:
1) a consciência da pluralidade, as várias personalidades vividas pelo poeta em seu mundo interior:

"Sê plural como o universo! “
"Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas."

"A cada personalidade mais demorada, que o autor destes livros conseguiu viver dentro de si, ele deu uma índole expressiva, e fez dessa personalidade um autor, com um livro, ou livros, com as idéias, as emoções, e a arte dos quais, ele o autor real, nada tem."
2) a tentativa de representar a multifacetada vida portuguesa: "Sendo nós portugueses, convém saber o que é que somos. 0 bom português é várias pessoas.
Nunca me sinto tão portuguesmente eu como quando me sinto diferente de mim - Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa, e quantos mais haja havidos ou por haver."
3) a tentativa de converter-se em toda uma literatura:

"Com uma tal falta de literatura, como há hoje, que pode um homem de gênio fazer senão converter-se, ele só, em uma literatura? Com uma tal falta de gente coexistível, como há hoje, que pode um honrem de sensibilidade fazer senão inventar os seus amigos, ou quando menos, os seus companheiros de espírito?"

4) Fernando Pessoa era, essencialmente, um poeta dramático:
"0 ponto central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático; tenho continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e a despersonalização do dramaturgo. Vôo outro - eis tudo."

"FICÇOES DO INTERLÚDIO"
Analisando o sentido do título que Fernando Pessoa escolheu para grande parte de sua obra heteronímica, temos de observar o significado amplo das palavras ficções e interlúdio.
A palavra ficção vem do latim fictionem e significa 'ato ou efeito de fingir, de simular'. É o produto da imaginação, da invenção.
Interlúdio, por sua vez, é formada pelo prefixo inter ('entre') mais o radical lúdio (do latim lúdere, 'brincar', 'divertir', 'jogar'). Tomada como um todo, a palavra interlúdio indica o jogo interno, a brincadeira recíproca, o brincar consigo mesmo. Na linguagem teatral, o interlúdio é o entreato, ou seja, a pequena cena ou trecho musical apresentada entre os atos de uma peça.
Chamamos a atenção para o fato de esse título evidenciar a proposta dramática (no sentido teatral do termo) de Fernando Pessoa, cujos heterônimos são personagens muito bem-acabados de uma grande peça poética.
Só mesmo um poeta dramático poderia realizar, formalmente, o vasto projeto literário de Fernando Pessoa. Sobre a despersonalização do dramaturgo, é fundamental a leitura do texto que tem servido como nota introdutória às "Ficções do interlúdio":
Nota preliminar
"0 primeiro grau da poesia lírica é aquele em que o poeta, concentrado no seu sentimento, exprime esse sentimento. Se ele, porém, for uma criatura de sentimentos variáveis e vários, exprimirá como que uma multiplicidade de personagens, unificadas somente pelo temperamento e pelo estilo. Um passo mais, na escala poética, e temos o poeta que é uma criatura de sentimentos vários e fictícios, mais imaginativo do que sentimental, e vivendo cada estado de alma antes pela inteligência que pela emoção. Este poeta exprimir-se-á como uma multiplicidade de personagens, unificadas, não já pelo temperamento e o estilo, pois que o temperamento está substituído pela imaginação, e o sentimento pela inteligência, mas tão-somente pelo simples estilo. Outro passo, na mesma escala de despersonalização, ou seja, de imaginação, e temos o poeta que em cada um dos seus estados mentais vários se integra de tal modo nele que de todo se despersonaliza, de sorte que, vivendo analiticamente esse estado da alma, faz dele como que a expressão de um outro personagem, e, sendo assim, o mesmo estilo tende a variar. Dê-se o passo final, e teremos um poeta que seja vários poetas, um poeta dramático escrevendo em poesia lírica. Cada grupo de estados de alma mais aproximados insensivelmente se tornará uma personagem, com estilo próprio, com sentimentos porventura diferentes, até opostos, aos típicos do poeta na sua pessoa viva. (...)
Por qualquer motivo temperamental que me não proponho analisar, nem importa que analise, construí dentro de mim várias personagens distintas entre si e de mim, personagens essas a que atribuí poemas vários que não são como eu, nos meus sentimentos e idéias, os escreveria.
Assim têm estes poemas de Caeiro, os de Ricardo Reis e os de Álvaro de Campos que ser considerados. Não há que buscar em quaisquer deles idéias ou sentimentos meus, pois muitos deles exprimem idéias que não aceito, sentimentos que nunca tive. Há simplesmente que os ler como estão, que é aliás como se deve ler."

Como você percebeu, Fernando Pessoa fala-nos sobre o processo de despersonalização do poeta, estabelecendo uma escala de quatro graus:
1º) a produção poética é unificada pelo temperamento e estilo, mesmo que exprima vários sentimentos; 2°) o temperamento varia, o estilo permanece único;
3°) o estilo varia, o poeta é único;
4°) o poeta se multiplica em outros poetas, "um poeta dramático escrevendo em poesia lírica".

Nesse último grau de escala de despersonalização está, por exemplo, o autor de teatro (Pessoa cita Shakespeare), que cria personagens que pensam, agem, defendem suas idéias, enfim, têm uma vida própria, que não pode ser confundida com a do autor.
A CRIAÇAO DOS HETERÔNIMOS
Para entendermos melhor esse fenômeno da heteronímia e, assim, penetrarmos no mundo de Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, transcrevemos trechos de uma carta enviada por Fernando Pessoa a seu amigo e crítico literário Adolfo Casais Monteiro, datada de 13 de janeiro de 1935. Nessa carta, o próprio Fernando Pessoa nos conta a origem dos heterônimos, bem como as características de cada um; acreditamos que, apesar de um pouco extensa, sua leitura é fundamental:
"Passo agora a responder a responder à sua pergunta sobre a gênese dos meus heterônimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.
Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterônimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurastênico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenômenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registro dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterônimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. (...)
Vou agora fazer-lhe a história direta dos meus heterônimos. Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro - os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.
Desde criança que tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, caráter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. (...)
Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterônimo, ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente - um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. (...)
Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou ou a quem suponho que sou. Dizia-o imediatamente, espontaneamente, como sendo de um certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura - cara, estatura, traje e gesto - imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto, vejo... E tenho saudades deles.
((...) Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na gênese dos meus heterônimos literários, que é afinal o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz.)
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à idéia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de mais regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro - de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira - foi em 8 de março de 1914 - acerquei-me de uma cômoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, '0 guardador de rebanhos'. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a 'Chuva oblíqua', de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou melhor, foi a reação de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir - instintiva e subconscientemente - uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jato, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a 'Ode triunfal' de Álvaro de Campos - a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem. (...)
Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de outubro de 1890 (à 1:30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inatividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mais seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais dois centímetros do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara raspada todos - o Caeiro, louro, sem cor, olhos azuis; Reis, de um vago moreno mate; Campos, entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma-só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico, é um latmista por educação alheia e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o 'Opiário'. Ensinou-lhe o latim um tio beirão que era padre.
Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis depois de uma deliberação abstrata, que subitamente se concretiza numa ode. Campos quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. ((...) Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente, mas com lapsos como dizer 'eu próprio' em vez de 'eu mesmo', etc. Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. (...))"
Incrível, não?! Como diz o próprio Fernando Pessoa na continuação da carta, parece que estamos "em meio a um manicômio". Mas, acrescentaríamos: um manicômio extremamente sadio, lógico e coerente. Difícil é acreditar que esses heterônimos de fato não existiram.

 

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(*) Extraído de:
DE NICOLA, José & INFANTE, Ulisses. Pessoa – pessoas. In: ________. Fernando Pessoa. São Paulo : Scipione, 1995. p. 20-25.

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