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Terça-Feira , 19 de Março de 2024
>> O Professor Escreve Sua História
   
 

Azul real lavável

Prof ª. Ana Maria Stuginski de B. Camargo

Início de março. O ar bafejava quente. Na sala de aula daquela cidadezinha do interior, a professora gorda, lá, na frente, descompassada no seu tailleur apertado, agitava sempre a pulseira de berloques quando escrevia no quadro.

- Pronto! Aqui está a lista do terceiro ano. Não se esqueçam! Papel de seda azul para as capas de caderno.

Ah... azul! Sentia-me importante. Azul a capa dos meus cadernos. Olhei para a nesga do céu. E fiquei a imaginar qual seria o azul. Azul- celeste... azul-anil... (igual à água que a mamãe fazia para enxaguar a roupa branca). E perdida procurando o azul ideal não percebi que a professora parada na minha frente desferia sobre mim seu olhar, chamando-me à realidade.

No quadro-negro a situação já mudara. Havia uma descrição para se fazer à vista de uma gravura. Olhar atento de todos. Silêncio quase ímpar. As cabecinhas se movimentavam como avezinhas ora pra frente, ora para o caderno, ora para o lado, buscando cada uma detalhes da gravura para compor com fidelidade a descrição. E eu me perdia no movimento das cabeças, no laço de fita engomada da cabeça morena a minha frente. Borboleta branca pousada bem ali quase no meu nariz. Inquieta, fazendo o caminho curioso da menina diante da gravura.

Ajeitava-me na carteira e tentava olhar a gravura e fazer a minha descrição. A professora andava pela sala e olhava as descrições de alguns alunos e palpitava cortando o silêncio:

- Cuidado! É preciso que se dê um adjetivo para cada substantivo. Vamos dar mais cor a esta descrição! Sejam fiéis às cores da gravura.
Pronto! Já todos com a borracha na mão apagando alguma palavra que talvez pudesse não ter ficado bem na oração.

Comecei a descrição. Alguns já passavam a limpo. A minha folha de linguagem limpa sobre a carteira. E eu rascunhava a descrição no caderno. Uns já levantavam e entregavam a folha com a descrição. A professora apressava a todos. Mostrava o relógio como indicador do tempo. E eu, parada no final da descrição, procurando um adjetivo para o céu que eu via ali na gravura. Queria um adjetivo diferente.
Tinha certeza de que todos iriam usar azul de anil. E eu queria dar ao céu da minha descrição um adjetivo que o tornasse intenso, navegável, profundo. A mão tamborilando o lápis na carteira escorregou e derrubou o tinteiro sobre a folha de linguagem. Achei! Havia um encanto naquele azul. Aproximei-me do vidro triangular do tinteiro. A cor: azul real lavável.

O meu céu seria azul real lavável. Dois adjetivos para o céu. E, na certa, a professora iria gostar. Ela gostava sempre que escrevêssemos com aquela cor. Dizia que o azul daquela tinta era o nosso céu. Fazia muxoxo quando pegava cadernos em que a tinta era de um azul desmaiado. As crianças da "Caixa"1 (todas) escreviam com azul desmaiado. A tinta não era de boa qualidade. A professora reclamava e corrigia os cadernos com má-vontade. Dizia que não havia legibilidade nas letras. E eu não entendia o mau-humor dela. Pois ela sabia que as crianças recebiam de graça a tinta e, portanto, não tinham escolha. Resolvi a questão por alguns dias. Ofereci-me para distribuir os cadernos nas carteiras antes da entrada dos alunos. Trouxera de casa (é claro, escondidos) três vidros de tinta azul real lavável. Acompanhada de outra colega, que cedera também sua tinta, começamos a encher os tinteiros das carteiras dos nossos colegas da "Caixa". Fui tomada de um sentimento que não sabia explicar. Conforme a tinta ia sendo entornada, eu tentava imaginar a cara da professora ao corrigir os cadernos. Ela na certa se surpreenderia. Todas as lições em azul real lavável. Todas as nossas letras num só tom. Nada dissonante para a professora. Todos escrevendo sob o mesmo céu.

Aplacamos, por algum tempo, a ira da nossa mestra. Mas, volto ao céu da minha descrição. Ansiosa, escrevi: "Encerrando a descrição (todos faziam esse final) vejo um céu de um azul real lavável belíssimo onde gaivotas parecem roupas brancas jogadas na tina de água azul anil...".


EEPSG "Caetano de Campos" - Capital

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