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Boa noite
Terça-Feira , 19 de Março de 2024
>> O Professor Escreve Sua História
   
 

Brasa Sob as Cinzas

Prof . Manoel Martins da Silva

As pombas no parapeito da velha janela disputavam migalhas de pão sem se importar com as pessoas que passavam. Sentado no banco ao lado, perdi a noção das horas, não notei que entre um sinal e outro as pessoas haviam saído e estava anoitecendo. Seu Antenor chegou com seus passos lerdos e precisos, iluminou a escola com a autoridade simples de quem brinca com a vida. Contava na época setenta anos e seus olhos marejavam quando recordava do tempo em que, naquele lugar onde fora construída a escola, os circos se instalavam trazendo o sonho e a diversão para as pessoas. Sempre terminava falando do pé de jaca; ali conhecera seu primeiro amor.

Quando começou o período noturno, dirigi-me para a sala de aula. Caminhando entre as pessoas, pensava qual deveria ser o tempo do saber, se existiria uma idade ou condição ideal para que isso ocorresse no coração do ser humano. O grupo de alunos com o qual trabalhava naquele momento era bastante heterogêneo, alguns com idade avançada e outros cuja dura vida diária havia amadurecido precocemente, apesar de muito jovens. Estudávamos há algumas aulas o período das navegações e tentávamos romper o método tradicional para buscar o entendimento desse momento tão rico e grandioso. Os alunos se dividiram em grupos e reconstruíram vários aspectos do período mercantil. Era preciso retratar a relação conflituosa entre os povos, o massacre dos índios pelos europeus, o desperdício de tantos sonhos, tanta destruição e a necessidade de reinventarmos a esperança... De repente, como num filme de Fellini, olhei para o teto (devíamos olhar mais para cima) e fiquei atônito: vi uma embarcação suspensa por um fio de náilon. Ela balançava como as embarcações do passado, ouvi barulhos de barricas de vinho e azeite e tinidos de metais. Minhas pernas tremeram como da primeira vez. As velas vermelhas de papel dobradura pareciam verdadeiras e traziam um cheiro lusitano misturado com sangue indígena. Os alunos compreenderam meu silêncio, um sentimento latino que tem atravessado os séculos de uma história a ser recontada.

Num repente de alegria e inquietação, um jovem começou a falar coisas estranhas. José Dantas era seu nome. Seus amigos riam do seu jeito nordestino e da sua fala cantada. Falou de Deus e da escuridão; da falta d'água e da sede de conhecimento que a humanidade sente no limiar do terceiro milênio. As escadas rolantes e os retirantes; a ausência e as feridas colecionadas nesta existência... Olhei para seu corpo magro e seu braço ausente (havia perdido o braço num acidente em uma empresa exportadora de cítricos). Sua fala tinha a força dos cristais, dos estrangeiros em sua própria casa.

As mãos que trabalham no corte da cana-de-açúcar e na colheita da laranja durante o dia podem, à noite, despertar a consciência, monstros bispos em lantejoulas coloridas ou embarcações em palitos de fósforo. O brilho da cola vinílica ficou tatuado na minha mente como um verniz, e agora que o tempo passou espero a chuva fina cessar neste canto de bar, sozinho, rabiscando um velho pedaço de papel.


EEPSG "Prof. Vitor Lacorte" - Araraquara

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