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Boa noite
Sexta-Feira , 26 de Abril de 2024
>> O Professor Escreve Sua História
   
 

Cleberson

Prof. José Antonio Breviglieri

Seu nome? Cleberson. O sobrenome não me lembro. Rapaz esguio, rosto moreno mate, cabelos negros. Magro. Olhos quietos.

Conheci-o no fundo da sala, sempre atrasado na primeira aula. Dele nunca me esqueci, pois via-o à noite dos domingos, trabalhando no bar de um clube da cidade.

- Me dá uma beira, seu Zé?

- Mora longe?

- No Laranjeiras, agora. Às vezes no Santo Antônio.

- Por que assim, num lugar e noutro?

- Agora estou com minha avó. Mas tem vez que eu vou pra casa de minha mulher.

- Casado, menino, assim novo?

- Tenho dezesseis... sou só amigado. Mas agora a gente está tudo na minha avó. Ela está grávida...

- Quantos meses?

- ... cinco...

- Além do clube, você tem outro trabalho?

- Estou desempregado... por isso fico na minha avó...

O Jardim Laranjeiras faz limite com o meretrício. Era justamente nesse limite que Cleberson estava morando com a mulher grávida, na casa da avó.

No dia seguinte, Cleberson novamente atrasado na primeira aula. Entrou quieto como sempre, naquele passo inocente de desavisado. Era prova bimestral de Física, marcada para a escola toda pela secretaria.

Entreguei-lhe a folha.

- Prova, hoje?

- ... Física...

- Vixe!!!...

Nunca me esqueci de seu rosto, seu jeito quieto de andar. Mas nunca me esquecerei sobreudo do Cleberson aluno mergulhado em seus pensamentos, perdido nos cálculos para decifrar a velocidade de um corpo que cai, num problema de Física.

- Professor...

Era Cleberson.

- ... o senhor sabe fazer conta de dividir?

- Eu... sei, Cleberson. Por quê?

- ... me ensina?

Risos.

Aproximei-me.

- Está aqui, professor. Como faz?

Era uma conta de dividir, sim, divisão por um algarismo.

De volta a minha mesa, olhei para a classe. Nela eu vi: Cleberson, dezesseis anos, primeiro ano do segundo grau não sabia conta de dividir. Meus alunos não sabiam conta de dividir por um algarismo.
Peguei a prova. A de Português, minha matéria, que seria aplicada no dia seguinte. Lá a questão: "Qual o motivo do castigo sofrido pelo gigante Adamastor?".

Percebi que a resposta estaria tão longe quanto dividir o número trinta e sete por três, numa prova de Física. Foi quando senti um frio angustioso: se Cleberson não dividia trinta e sete por três, se os outros alunos estavam empacados numa conta de dividir, presos numa sala noturna de segundo grau numa prova de Física, é porque saber ou não saber uma simples operação matemática não alterava em nada suas vidas. O que dizer de Camões, então? O que significaria para eles a tragédia do gigante castigado por Zeus apenas porque se apaixonara por Tétis? Bem sei que o grande deus não castigara Adamastor por causa de uma questão passional. Bem sei que o gigante fora antes ousado, se cansara de ser pau-mandado. Rebelara-se. Perdera na luta.

Cleberson ali na minha frente. O próprio Prometeu acorrentado. Na prova de Física, preso por uma conta de dividir. Por um algarismo. E o abutre lá, encastelado num ministério, a devorar a vitalidade dessa juventude sem perspectiva. E eu, Hércules alienado, sem forças para romper as cadeias.

Nesse momento, me senti também um abutre. Guardei a prova de Literatura no bolso. E confesso: sem ação.

Cleberson não foi reprovado no fim do ano. Morreu metralhado na rua divisória entre a casa da avó e o meretrício. Sei que numa noite de sábado para domingo. Disseram que havia resistido à voz de prisão.


EEPSG "Dr. Paraíso Cavalcanti" - Bebedouro

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