Quando se vê sem enxergar |
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Prof ª. Luzia Aparecida Barion Ferrarezzi |
Imaginem um lugar paradisíaco onde o ar simplesmente os presenteia com uma gama interminável de perfumes naturais que pode passar da alfazema roxa ao capim-de-cheiro, sem com isso afrontar as suas narinas. Onde répteis asquerosos fogem arbustos adentro ao mero roçar de passos nas folhas secas. Onde a existência humana irmana-se com a convivência animal por leis tão peculiares, que a intervenção de qualquer causa transcendente seria um insulto à natureza.
Pois foi nesse Éden perdido pelo interior paulista sem TV, sem cinema, jornais ou revistas que me flagrei percorrendo cinco quilômetros, a pé, para lecionar a um grupo de personagens arquetípicos. Via-me dentro de um filme felliniano cercada por uma petizada apática, cujas mãozinhas sujas ofereciam pequenos pagamentos por um dia de aula: um colar feito com macarrãozinho padre-nosso, uma almofadinha de crochê, um favo de mel, coisinhas assim.
Um dia, uma mãe trouxe-me o maior dos desafios e que tempos mais tarde seria meu maior reembolso pelos anos no magistério: um capiauzinho de porte limitado e grandes ambições internas.
A mulher, simplória, disse ipsis litteris: "Fessora, faiz o Tião vê as coisa do mundo".
Fácil, se não fosse o caipirinha cego por nascença.
Sem recursos pedagógicos, desfiz-me em instintos e invulnerabilidade para vencer tal provocação.
Havia um ponto de partida: pesquisei o sistema braile para as primeiras lições, confeccionando as letras em quadrinhos de papelão.
Ele leu. Já era um "radarzinho humano" que se movia com uma rapidez incrível por entre carteiras e armários, apanhava objetos solicitados, respondia a questões matemáticas usando o ábaco... mas como ensinar-lhe a trajetória do vôo do anum e a cor do próprio pássaro?
Como fazê-lo entender e perceber o formato das nuvens e a dimensão do tempo?
Diante dessa minha impotência, chorei durante noites insones até que uma luz brilhou dentro de tantos pontos de interrogação aboletados em minha cabeça. A solução chegou em pingados de lampejos, insights: a sala de aula passou a ser os escassos jardins e hortas das casas da colônia.
As cores partiriam da intensidade da cor negra e se classificariam por quentes ou frias. Algo gelado ou morno em suas mãos determinaria a intensidade das cores. Os lápis coloridos do Tião tinham identificação dentro da caixa, assim: preto nº 1, marrom nº 2, vermelho nº 3...
- Professora, já sei como é o arco-íris!
Chumaços de algodão viraram nuvens. Pedacinhos de barbante colados sobre papel viraram sol, lua, montanhas e flores. Os dedos de Tião descobriram a Natureza. Um relógio de vidro quebrado com os números em relevo dividiu os dias e as noites em horas e minutos.
Música com danças e véus, e o Tião virou aquele anum "voando" junto com as meninas pela classe...
Hoje tenho uma classe especial cheinha de Tiões que querem enxergar o mundo através da escuridão.
... E, por acaso, coloquei também o mundo aos meus pés. Eu, cúmplice de uma terna e majestosa batalha arrancando de mim pedaços de sorrisos de gratidão.
EEPSG "Vicente Barbosa" - Valparaíso
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