Remember Santoro |
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Prof . José Carlos Mendes
Brandão |
Quem se lembra do professor Santoro? Eu tenho
vergonha de me lembrar tão pouco do Santoro. Às
vezes me lembro de que pertenço a uma categoria profissional
que vê os seus companheiros morrendo na trincheira ao
lado. Não posso fazer nada e só posso sentir
vergonha. Um grande pesar e um nó na garganta, um sentimento
de incapacidade de ação que estrangula.
O Santoro foi estrangulado pela profissão que escolheu.
Saía de uma sala de aula para outra e depois para outra.
Anos e anos percorreu essa via-crucis; sem ser o Cristo, se
esfalfou nos passos do Calvário. Nem o Cristo agüentou
carregar a sua cruz; precisou de um Simão Cirineu.
A nossa escola tem uma pequena igreja num dos pátios.
O Santoro saiu de uma sala de aula, de uma das estações
da sua via-crucis, a caminho de outra sala de aula. Morreu
na frente da igreja. Dias e dias eu passava por ali e parava
diante da mancha de sangue que ficou nas pedras do calçamento
e não se apagava, não se apagava.
O Santoro deu uma aula calma, sossegada, muito calma e muito
sossegada como era do feitio da sua alma boa. Nada o abalava.
A caminho de mais uma aula caiu no chão, soltando uma
golfada de sangue pela boca. Morreu como um cão. A
imagem é exagerada: "morrer como um cão".
Mas foi a imagem que me ficou.
O Santoro executado no processo de K., sem ser K.
Ninguém tinha coragem de se aproximar. Um homem se
dobra em dois, curva-se até o chão, fica de
quatro, tenta erguer uma perna, um braço e expele sangue.
E o sangue não era azul como o da nobreza. E o Santoro
era um nobre.
E o sangue não era vermelho como o do comum dos mortais.
Era escuro ou era roxo, mas de um roxo sujo. Era um sangue
de cor indefinida. Era um vômito nojento. Outra vez
tenho de falar em vergonha. Eu tenho vergonha e muita vergonha,
mas era nojento. Meu amigo nojento. Como um cão.
Dias e dias aquele sangue não se desgrudava das pedras
diante da igreja. Ainda deve estar lá. O Santoro vomitou
a sua dor e o vômito da dor não se apaga nunca.
Eu comecei a morrer. Você começa a morrer quando
começa a contar os mortos.
No pátio maior da escola fica o túmulo do nosso
fundador.
E um monumento em bronze erguido sobre, com o homem solene
sentado, os braços abertos. Dizem que protege a escola,
que de noite se levanta e caminha pelos pátios e pelos
corredores e pelas oficinas e pelas salas de aula e entre
as camas no dormitório dos meninos internos e na cozinha,
na horta, nos jardins.
Eu olho para o velho morto no início do século
e é como se estivesse vendo o Santoro. Eu vejo o Santoro
reencarnado em pedra. Gozado. A carne morta feita pedra que
anda.
Eu vejo o Santoro gesticulando do alto do monumento em bronze
ou pedra. E caminhando pelos desvãos da escola velha
como um museu muito velho.
O Fundador construiu a escola para receber os meninos pobres
da região, e uns oitenta internos mais três mil
outros meninos e jovens recebem formação profissional
em oficinas e mais oficinas. Sob os olhos do Fundador e do
Santoro.
O Fundador feito carne na carne morta do Santoro. O Santoro
feito mito no bronze e pedra do Fundador.
Um jeito de o sangue azul do Santoro não se tornar
um sangue porco. O Santoro que deu o sangue pela escola.
EEPSG "Ernesto Monte" - Bauru
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