Sem Título |
|
Prof ª. Waldizia Moniz |
Sujeitinho detestável aquele tal
de Bertoldo...
Desde o primeiro dia de aula, lá estava ele recostado
no muro da velha escola, olhando fixo para mim, um jeito petulante,
superior.
Era o meu primeiro ano como titular no cargo.
Naquele bloco de alunos problemáticos, o Bertoldo veio
junto. Magrinho, macilento, possuía uma enorme cicatriz
que começava no canto do olho esquerdo e descia até
o meio da cara. Por conta disto, ganhou uma expressão
de deboche na fisionomia.
Ele não perdia uma aula. Dia após dia encontrava
uma maneira nova de me provocar, gritando, assobiando, caindo
da cadeira, tendo acessos de riso.
Meus livros eram constantemente escondidos pelo Bertoldo.
Apareciam sempre dias depois nos lugares mais estranhos.
Eu me desesperava, ora castigando, ora falando manso com aquele
rapazinho horrível que colocava em risco minha vocação.
Filho de pai presidiário e mãe alcoólatra,
Bertoldo rejeitava a família.
Dizia-se órfão.
Quanto a mim, contava cada dia que passava, para que o ano
logo terminasse e eu pudesse deixar aquela escola.
Certa tarde, ao ver meu velho carro todo riscado, chorei as
lágrimas que vinha guardando há muito tempo.
Bertoldo me olhava de longe. Seria ele tão cruel assim?
No final de novembro, meu jovem inimigo desapareceu. Sumiu
das aulas. Estranhei... e gostei.
Alguém comentou que Bertoldo estava seriamente doente.
Procurei não pensar nele. Afinal estava trabalhando
em paz.
Volta e meia, durante as aulas, eu batia os olhos naquela
cadeira vazia no fundo da classe. Por que Bertoldo não
retornava?
Teria alguém cuidando dele se não estivesse
bem de saúde?
Já era dezembro quando resolvi dar uma passadinha em
sua casa. A própria mãe me recebeu, dizendo
frases meio sem sentido.
Por cima do ombro dela, enxerguei o Bertoldo deitado, observando
a cena. Seu rosto trazia agora apenas a marca do desamparo.
Entendi que estava morrendo.
É leucemia, fungou a mulher.
Caminhei até o garoto e tomei seus dedos finos em minhas
mãos. Ele sorriu e sussurrou no meu ouvido:
Professora... eu não toquei no seu carro. A
senhora... é minha melhor amiga. Não me deixe
sozinho.
Não consegui dizer palavra. Eu tinha muito o que aprender
em minha vida de professora.
Após a morte do Bertoldo, ainda permaneci naquela escola
por mais seis anos. Talvez amor e admiração
vestissem roupagens tão variadas a ponto de me confundirem.
Sentimentos... quem sou eu para entendê-los?
EEPSG "Maria Rosa Barbosa" - São Bernardo
do Campo
Para mais informações clique em AJUDA
no menu.
|