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Boa noite
Segunda-Feira , 18 de Março de 2024
>> O Professor Escreve Sua História
   
 

Um pé na África e o coração também

Prof ª. Ana Maria da Costa

A sala de aula era clara. Quatro janelas grandes, sujas, com alguns vidros quebrados. Lousa bem colocada, escrivaninha normal, dessas em que não cabe nada daquele monte que a gente carrega. Poderia ser uma escola pública qualquer de São Paulo ou de outro lugar, não fosse pelos alunos que me olhavam. A grande maioria negra; dos tons de pele mais variados: do negro-negro ao achocolatado e enormes olhos atentos. O restante dos alunos era descendente de indianos ou mulatos. Todos atentos.

Fazia mais ou menos uns quatro meses que eu estava em Maputo, capital de Moçambique. Por algum tempo, andei vazia e estrangeira pela minha terra. Para encontrar algum sentido, mudei de país. Sonhei, sonhava e sonhava com a África, com suas savanas e, mais ainda, com a utopia de um povo que se reconstrói...

Aproximadamente uns quarenta olhos observavam-me quando entrei na sala de aula; maiores que o normal, curiosos e observadores. Negros olhos da negra África. Misteriosos. Perscrutaram-me. Estranhei a organização impecável dos alunos e o silêncio pairante.

Desde que assumira as aulas de Língua Portuguesa dos primeiros anos de uma escola técnica do segundo grau em Maputo, incomodava-me desenvolver o conteúdo do planejamento fornecido pelo outro professor e avalizado pelo Ministério da Educação. O conteúdo era idêntico ao programa brasileiro para o segundo grau na área de Língua Portuguesa: teoria da comunicação, signos lingüísticos, funções da linguagem e por aí afora. Genialíssimo processo de abstração para quem tem o domínio da língua.

Eu percebia que, durante as exposições das aulas, a rapaziada olhava-me com simpatia (eu os fazia rir), mas aquilo que era explicado, desastre! Eles mantinham uma postura corporal estranhamente imóvel, bastante incômoda para mim. Com o tempo, aprendi ser uma forma de resistência.

Ao longo das semanas de trabalho, passados o primeiro impacto e a primeira estranheza quanto à língua, posturas, atitudes, problemas na comunicação, descobrimo-nos como amigos curiosos. Que delícia!

Conversávamos sobre nossas culturas. Senti liberdade para discutir com uma turma do curso de Mecânica, por quem eu sentia muito carinho, o problema do conteúdo da Língua Portuguesa.

Eu argumentava sobre uns probleminhas que dificultavam o processo ensino-aprendizagem; todos sentiam uma imensa dificuldade para compreender os conceitos trabalhados ou, pior, não entendiam nada.

Alguns alunos, em função de terem excelente memória (relacionada à tradição oral), reproduziam falas inteiras sem compreensão alguma. O problema maior, no entanto, era o fato de a maioria dos alunos não dominar a língua portuguesa. O léxico era pobre, e muitos alunos simplesmente não falavam. Sorriam somente.

Tivemos conversas sobre isto; conversas sérias e freqüentes. Os que eram desinibidos e mais falantes argumentavam sobre a necessidade de eu trabalhar o programa estabelecido. Eu dizia que nós podíamos mudá-lo, buscando uma maneira de trabalhar a língua que fosse mais rica, dinâmica e participativa. E vivia um tanto quanto desanimada e meio pesada. Mal sabia que aquilo que vinha acontecendo já fazia parte de um processo.

Nesta manhã de céu azul, quando entrei em sala sob os olhares atentos de meus alunos, fui surpreendida. Talvez tenha ganho um desses presentes que só professor entende.

O mais velho dos mais velhos dos alunos daquela classe pediu licença para falar. Disse-me: "A senhora professora está a olhar a sala organizada. Cada fileira de alunos tem um representante, que é o mais velho desse grupo e irá organizar a equipe. Eu sou o representante de todos porque sou o mais velho". Prosseguiu: "Sabe, senhora professora, temos estado preocupados com tudo que a senhora vem dizendo sobre as aulas de Língua Portuguesa. Faz uma semana que estamos a conversar sobre os seus argumentos. Queremos saber qual é a sua proposta. Ouviremos. Se gostarmos, aceitamos mudar".

Imaginem o meu espanto. Maravilhosa, encantadora, surpreendente e sábia cultura desse negro povo. Por dentro, eu não tinha sangue, tinha a corredeira de um rio nas veias e um nó na garganta que me deixou muda por longos segundos: Quantos mil pensamentos tive: a compreensão do que acontecia, a emoção e o respeito por todos aqueles olhos luminosos...

Amei-os, juntos aprendemos a construir nossas aulas.

Parece pouco?


EEPSG "Anhanguera" - Capital

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