Um pé na África e o
coração também |
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Prof ª. Ana Maria da Costa |
A sala de aula era clara. Quatro janelas
grandes, sujas, com alguns vidros quebrados. Lousa bem colocada,
escrivaninha normal, dessas em que não cabe nada daquele
monte que a gente carrega. Poderia ser uma escola pública
qualquer de São Paulo ou de outro lugar, não
fosse pelos alunos que me olhavam. A grande maioria negra;
dos tons de pele mais variados: do negro-negro ao achocolatado
e enormes olhos atentos. O restante dos alunos era descendente
de indianos ou mulatos. Todos atentos.
Fazia mais ou menos uns quatro meses que eu estava em Maputo,
capital de Moçambique. Por algum tempo, andei vazia
e estrangeira pela minha terra. Para encontrar algum sentido,
mudei de país. Sonhei, sonhava e sonhava com a África,
com suas savanas e, mais ainda, com a utopia de um povo que
se reconstrói...
Aproximadamente uns quarenta olhos observavam-me quando entrei
na sala de aula; maiores que o normal, curiosos e observadores.
Negros olhos da negra África. Misteriosos. Perscrutaram-me.
Estranhei a organização impecável dos
alunos e o silêncio pairante.
Desde que assumira as aulas de Língua Portuguesa dos
primeiros anos de uma escola técnica do segundo grau
em Maputo, incomodava-me desenvolver o conteúdo do
planejamento fornecido pelo outro professor e avalizado pelo
Ministério da Educação. O conteúdo
era idêntico ao programa brasileiro para o segundo grau
na área de Língua Portuguesa: teoria da comunicação,
signos lingüísticos, funções da
linguagem e por aí afora. Genialíssimo processo
de abstração para quem tem o domínio
da língua.
Eu percebia que, durante as exposições das aulas,
a rapaziada olhava-me com simpatia (eu os fazia rir), mas
aquilo que era explicado, desastre! Eles mantinham uma postura
corporal estranhamente imóvel, bastante incômoda
para mim. Com o tempo, aprendi ser uma forma de resistência.
Ao longo das semanas de trabalho, passados o primeiro impacto
e a primeira estranheza quanto à língua, posturas,
atitudes, problemas na comunicação, descobrimo-nos
como amigos curiosos. Que delícia!
Conversávamos sobre nossas culturas. Senti liberdade
para discutir com uma turma do curso de Mecânica, por
quem eu sentia muito carinho, o problema do conteúdo
da Língua Portuguesa.
Eu argumentava sobre uns probleminhas que dificultavam o processo
ensino-aprendizagem; todos sentiam uma imensa dificuldade
para compreender os conceitos trabalhados ou, pior, não
entendiam nada.
Alguns alunos, em função de terem excelente
memória (relacionada à tradição
oral), reproduziam falas inteiras sem compreensão alguma.
O problema maior, no entanto, era o fato de a maioria dos
alunos não dominar a língua portuguesa. O léxico
era pobre, e muitos alunos simplesmente não falavam.
Sorriam somente.
Tivemos conversas sobre isto; conversas sérias e freqüentes.
Os que eram desinibidos e mais falantes argumentavam sobre
a necessidade de eu trabalhar o programa estabelecido. Eu
dizia que nós podíamos mudá-lo, buscando
uma maneira de trabalhar a língua que fosse mais rica,
dinâmica e participativa. E vivia um tanto quanto desanimada
e meio pesada. Mal sabia que aquilo que vinha acontecendo
já fazia parte de um processo.
Nesta manhã de céu azul, quando entrei em sala
sob os olhares atentos de meus alunos, fui surpreendida. Talvez
tenha ganho um desses presentes que só professor entende.
O mais velho dos mais velhos dos alunos daquela classe pediu
licença para falar. Disse-me: "A senhora professora
está a olhar a sala organizada. Cada fileira de alunos
tem um representante, que é o mais velho desse grupo
e irá organizar a equipe. Eu sou o representante de
todos porque sou o mais velho". Prosseguiu: "Sabe,
senhora professora, temos estado preocupados com tudo que
a senhora vem dizendo sobre as aulas de Língua Portuguesa.
Faz uma semana que estamos a conversar sobre os seus argumentos.
Queremos saber qual é a sua proposta. Ouviremos. Se
gostarmos, aceitamos mudar".
Imaginem o meu espanto. Maravilhosa, encantadora, surpreendente
e sábia cultura desse negro povo. Por dentro, eu não
tinha sangue, tinha a corredeira de um rio nas veias e um
nó na garganta que me deixou muda por longos segundos:
Quantos mil pensamentos tive: a compreensão do que
acontecia, a emoção e o respeito por todos aqueles
olhos luminosos...
Amei-os, juntos aprendemos a construir nossas aulas.
Parece pouco?
EEPSG "Anhanguera" - Capital
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