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Boa noite
Terça-Feira , 16 de Abril de 2024
>> O Professor Escreve Sua História
   
 

Uma quase eterna luta


Prof. Carlos Antonio Lourival de Lima


"Sinto preciso
ocultar meu íntimo aos olhares
e aos perscrutamentos que olhares mostram,
Não quero que ninguém saiba o que sinto,
Além de que o não posso a alguém dizer..."
(Fernando Pessoa, Primeiro Fausto)


Estávamos em 1995. Naquele ano, eu pegara cinco primeiros colegiais à noite; era um grande desafio, por serem primeiros e por serem do período noturno.

Já no primeiro bimestre eu notara a presença inquietante daquele aluno. Para tudo que era solicitado, ele virava de um lado para o outro, balbuciava guturalmente qualquer coisa, dava tapinhas na carteira e dizia pra si mesmo: "nada a ver".

Rivanílson, esse nosso aluno inquietante, é alto, moreno, cabelo à escovinha, gingado de malandro - sempre portando uma espessa jaqueta de nylon - e muito educado. Tinha nos olhos, como percebi logo naquele primeiro bimestre, a sensibilidade que o corpo e a fala faziam força para esconder.

- Hoje nosso assunto é poesia - gritei cortando tempo e espaço naquele primeiro F.

Alguns se entusiasmaram gritando um "eeeeeeee", as meninas apaixonadas - e que ainda acreditavam que poesia era apenas um texto que falava de amor - suspiravam "hummmmmm!!!". Mas ouvi, quase não ouvindo:

- Nada a ver! Isso é coisa de veado.

Fiz que não ouvi, mas acho que deixei escapar um leve sorriso, talvez irônico, talvez desolador. Mudei o começo que havia preparado, e saiu, mais ou menos:

- Quando falamos em poesia, é comum ouvirmos de cara que ela é coisa de veado, de mulher, e que tem que falar necessariamente de amor. É preciso conhecermos um pouco mais a poesia, seu conteúdo, sua função. Poesia expressa qualquer estado emocional, qualquer sentimento.

Depois dessa fala, li alguns poemas de Camões a Leminski. Após comentar os poemas, seus autores, suas principais características, desviei meu olhar para o Rivanílson e lhe perguntei se gostava de pagode. Como militante da geração pagode, respondeu-me não só que sim, como também "tudo a ver". Perguntei-lhe se se considerasse apenas o texto, como em qualquer música, se ele poderia ser concebido como poema; respondeu-me que não sabia, mas que a poesia não tinha "nada a ver" com pagode. Novamente ri, mas bateu o sinal, como se soasse o gongo e cada um de nós fosse para o seu corner.

Durante todo aquele ano ouvi muitos "nada a ver". Aprendi a conviver com eles e os esperava a qualquer momento, principalmente durante as análises e interpretações dos textos literários; nas avaliações ouvi muitos também.

Encontro nosso Rivanílson no segundo colegial. Passou merecidamente, era esforçado e fazia todas as atividades, embora, é claro, reclamasse muito e apresentasse muitas dificuldades na matéria. Caminhou durante o segundo ano claudicando, é bem verdade, mas dizendo cada vez menos "nada a ver" e vendo cada vez mais que a infinitude da literatura estava relacionada mais do que se podia imaginar com a vida.

Reencontro-o agora no terceiro colegial. Sua sensibilidade aflora pela pele, pela boca, pelo corpo. Suas dificuldades são menores e sua resistência tem diminuído consideravelmente. Chamam-me a atenção sua curiosidade literária, seu deslumbramento diante de um poema do Manuel Bandeira, sua perplexidade perante Murilo Mendes e, principalmente, seu esquecimento daquela velha e companheira frase: "nada a ver".


EEPSG "Odete Maria de Freitas" - Embu

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