Mário de Andrade, o colecionador aprendiz |
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Publicado pelo jornal O Estado de S.Paulo 14/09/2004 |
(Antonio Gonçalves Filho)
A atividade do escritor Mário de Andrade como colecionador não se limitou a guardar os inúmeros retratos que os maiores nomes do modernismo brasileiro - de Anita Malfatti a Tarsila do Amaral - pintaram dele. O autor de Macunaíma, um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna de 22, foi também um empolgado colecionador de arte religiosa e artesanato popular, recolhendo objetos de Norte a Sul do País durante suas andanças como "turista aprendiz" e pesquisador do folclore brasileiro. É justamente essa coleção inédita, formada entre 1919 e 1945, que o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP) exibe, a partir de hoje, em sua sede, na Cidade Universitária.
São 236 objetos entre imagens religiosas (católicas e afro-brasileiras), instrumentos musicais e indumentária indígena, reproduzidos no luxuoso catálogo de 448 páginas publicado em regime de co-edição pela Edusp e Imprensa Oficial, o penúltimo da coleção de 12 volumes "Uspiana Brasil 500 Anos", lançada há quatro anos. Todo cuidado gráfico não rivaliza com a exposição desses objetos, recolhidos com muito critério por Mário e amigos pesquisadores. É a primeira vez que o público vai ver o conjunto dessas peças que integram o acervo do escritor, adquirido pela USP em 1968 e tombado pelo Iphan em 1995.
A mostra, que tem curadoria da professora Marta Rossetti Batista e projeto museográfico de Marcos Moraes, prepara o caminho para um seminário a ser realizado na USP, entre outubro e novembro, sobre Mário de Andrade e sua coleção. Mais que objetos, as peças em exposição revelam, segundo a curadora, um ambicioso projeto de estudo sobre as características do povo brasileiro, animado pela influência da antropóloga Dina Lévi-Strauss, que chegou ao Brasil com o marido Claude nos anos 30 e tornou-se amiga do escritor brasileiro. Como diretor do Departamento de Cultura do Município, embrião da atual Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, Mário convidou-a para cuidar da área de etnologia e folclore.
Uma das grandes descobertas - ou autodescoberta - do autor foi a arte religiosa de origem afro, que o levou a um terreiro da Paraíba, onde teve o corpo "fechado" por uma mãe de santo, em 1927. Amigo do compositor Pixinguinha, um iniciado nos mistérios do candomblé, Mário era, então, apenas o neófito tímido que escapara da congregação mariana para ver o que se passava no reino dos orixás. Um ano depois, em Macunaíma (1928), ele descreve uma cena de macumba destinada a convencer qualquer turista aprendiz, após ter recolhido artefatos indígenas na Amazônia e objetos relacionados às danças populares no Nordeste.
A curadora Marta Rossetti lembra que o autor, vindo de uma família católica fervorosa, jamais abandonou o hábito de colecionar seus santos de devoção, imagens indo-portuguesas de marfim ou peças barrocas do período colonial, além de reproduções populares ("paulistinhas"). Curiosamente, os pesquisadores não encontraram textos do escritor que façam menção à maioria das peças expostas, entre elas um intrigante demônio de ferro, salvo da perseguição que o governo Vargas promoveu aos terreiros de umbanda durante o Estado Novo. Getúlio passou. Venceu o Exu Sete Caminhos, que desafia o espectador com sua estranha aparência de homúnculo de Giacometti. O Exu de ferro data da época dos primeiros congressos afro-brasileiros (em Recife, 1934, e Salvador, 1937).
"Antes de Dina Lévi-Strauss, Mário olhava para esses objetos apenas como peças decorativas", conta a curadora. O encontro entre os dois levou o escritor a desenvolver um método de pesquisa que é a ponta de lança dos estudos africanistas. "Mário também foi pioneiro ao traçar relações entre a arte religiosa popular e modernistas como Brecheret", conclui Marta Rossetti.
Muitos amigos, lembra ela, ajudaram o escritor na coleta dos objetos, em particular seu companheiro no Departamento de Cultura, Luiz Saia, que dirigiu a missão de pesquisas folclóricas enviada por Mário ao Nordeste para recolher material sobre danças e costumes populares. Saia fez mais. Voltou
O Estado de S.Paulo
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