Ciclo traz Fellini quase completo |
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Publicado pelo jornal O Estado de S.Paulo 21/09/2004 |
(Luiz Zanin Oricchio)
Figúrati!, palavra de admiração usada pela língua italiana, foi o termo escolhido para a mostra que traz a obra (quase) completa de Federico Fellini, uma promoção do Centro Cultural Banco do Brasil, com apoio do Cinusp. A retrospectiva se estende de hoje a 29 de outubro, tempo suficientemente longo para ver, ou rever, os longas-metragens do mestre, do primeiro, Mulheres e Luzes (1951) ao último, A Voz da Lua (1991), passando por seus episódios de longas divididos com outros diretores, As Tentações do Dr. Antonio, de Bocaccio 70, e Toby Dammit, de Histórias Extraordinárias. Na noite de abertura, às 19h45, haverá um debate com dois especialistas, os professores Ismail Xavier e Mariarosaria Fabris. Ismail fala das relações entre Fellini e outro gênio, Chaplin. Mariarosaria analisa a presença de diretores entre os personagens dos primeiros filmes de Fellini, do chefe da trupe de Mulheres e Luzes ao diretor de fotonovelas de Abismo de Um Sonho, até chegar à figura do cineasta - Guido Anselmi (Marcello Mastroianni) em 8 1/2.
É até banal dizer que Fellini foi um dos maiores diretores do século passado. Mas talvez seja interessante lembrar que foi também um dos mais amados. Alguns dos seus filmes fizeram grande sucesso e personagens entraram para o imaginário popular de vários países e não apenas da Itália. São filmes que têm êxito, na verdade, a cada vez que reprisados, como é o caso de Amarcord, mas também de Os Boas-Vidas ou A Doce Vida. Ou ainda Noites de Cabíria ou A Estrada da Vida. Obras de densidade estupenda, mas que ninguém se atreveria a classificar de "intelectuais" no mau sentido do termo, ou herméticas, ou coisa que o valha. Fellini fazia filmes cheios de emoção, agradáveis ao grande público e também à crítica. Resolvia, de maneira genial, essa no fundo falsa dicotomia entre cinema de emoções e cinema cerebral.
Há uma linha evolutiva bastante perceptível na trajetória que vai do início dos anos 50 à década de 90. Nesse arco de 40 anos de atividade como diretor, Fellini partiu dos princípios do neo-realismo, movimento do qual participou junto com Rossellini, Visconti, Pasolini e outros, até a criação de uma poética muito particular. Um mundo muito especial, na verdade. Garimpando em sua memória e em suas próprias fantasias, construiu um posto avançado de observação de um real ampliado - entendendo-se assim tanto o mundo social quanto a esfera privada, a inconfessável intimidade das pessoas. Esse princípio de vasos comunicantes entre o pessoal e o social está em todos os seus grandes filmes, como A Doce Vida, 8 1/2 e Amarcord. E essa estratégia de observação subordina-se à tática de ministrar ironia e ternura em doses generosas, de modo que uma compensa a outra e não deixa o filme cair na amargura ou no melodrama barato. O segredo dessa mistura fina ele levou com ele.
A retrospectiva é oportunidade de rever essas grandes obras, mas também de prestar atenção naquilo que às vezes é insuficientemente apreciado em Fellini. Por exemplo o surpreendente episódio de Histórias Extraordinárias, Toby Dammit, um filme lisérgico.
Outro a ser redescoberto é Satyricon, adaptação de Petrônio na qual se assiste, com clareza, a interface necessária entre o cinema e as artes visuais. Cidade das Mulheres foi tachado de machista. Mas essa restrição não percebe o quanto, ao contrário, é depreciativo em relação aos "machões" de anedota. Ginger & Fred é uma crítica à televisão que pareceu um tanto ingênua, mas o fato é que a Itália ainda não havia ingressado na era Berlusconi, que a posteriori acaba justificando toda a sua acidez.
E, por fim, A Voz da Lua, o último, complexo e irregular longa-metragem.
Inspirado em Leopardi, com um Roberto Benigni em estado de graça como o maluquinho que ouve vozes no fundo dos poços, trata-se de um grande filme problemático. Antecipa questões que se tornariam mais claras logo adiante, como o ensurdecedor ruído da era da mídia e suas conseqüências para a alienação da humanidade. Grande Fellini, que mesmo ao errar, acertava.
O Estado de S.Paulo
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