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Reflexões num supermercado


Artigo de Dulce Critelli na Folha de S.Paulo 10/02/2005

Fazia compras num supermercado quando fui surpreendida por um alvoroço. Uma moradora de rua, nitidamente perturbada, que entrara driblando a vigilância, gritava, esmurrava prateleiras, trombou com alguns clientes e se jogou no chão. Dizia estar com tuberculose e erguia a blusa, mostrando o peito, para tornar visível uma doença invisível. Os seguranças correram e, com muita delicadeza, tentaram acalmá-la e tirá-la dali. Mas a cada aproximação deles, ela gritava mais, como se a estivessem atacando.
Os clientes interromperam suas compras e observavam, de uma distância em que se sentissem a salvo das investidas dela. Com sua confusão, sua agressividade, sua loucura, aquela mulher invadia e alterava a rotina das compras num supermercado, em nada popular.
A mulher não estava sendo impedida de levar de graça a mercadoria. Era evidente que sua necessidade era a de promover e se alimentar do tumulto que criava. Mesmo diante de tal obviedade, os comentários que se faziam em voz alta, reverberavam em ecos infinitos: "o que ela quer, o leite? Eu pago". Eu pago... Eu pago... A frase embutida em tantas ofertas era: "assim ela vai embora e poderemos voltar para a nossa tranqüilidade".
Por sua insistência em ficar no supermercado, aquela mulher nos obrigou a permanecer diante da pura desordem, aquela que no nosso cotidiano sempre varremos para debaixo do tapete. Especialmente nossos fantasmas, medos e incapacidades.
A ordem que sustenta nosso mundo está longe daquela de cada coisa em seu lugar. Também não é a ordem da lei. É a ordem que calcula e manipula nossos procedimentos como se fossem coisas previsíveis e controláveis. Como aquela de que fala nossa bandeira: ordem e progresso. É a ordem que rege os manuais não só das boas maneiras mas de todas as maneiras, de todos os gestos, palavras, pensamentos e sentimentos. A ordem que vigora no nosso mundo é aquela do método, ditado sobretudo pela economia e pela técnica.
É o que Nietzsche já antecipava, quando dizia que o século 20 veria a vitória do método sobre a filosofia, sobre o pensamento. Perdemos a criatividade, a iniciativa de agir diante do inesperado, do imprevisível e do incontrolável.
Nessa desordem, em que não está mais estipulado como devemos proceder, nos deparamos com um vazio de referências.
No filme "Eclipse de uma Paixão" (1995), o poeta Rimbaud é retratado na sua agressividade. Mas o seu vandalismo tinha a intenção clara de quebrar a mediocridade da vida burguesa. Rimbaud queria mudar o mundo para ajudar as pessoas. Era também o que os jovens de 68 queriam. Mas hoje, policiada pelo consumo, pela política e pela ciência, essa paixão por um mundo ideal, fica de fato eclipsada, aflorando apenas em poucos corações.
Como qualquer outro comportamento, o impulso de mudança está pré-definido. Ele hoje é violência. E a violência arrasa, mas não traz modificação nenhuma.
Nosso mundo nos convoca -tanto por meio da mídia quanto por meio da escola- a um desempenho sem enganos, a um conhecimento sem falácias, a uma competência sem limites.
Um mundo no qual não cabem loucos nem desajustados. No qual não cabe solução que não seja financeira: "eu pago".
O que me tocou no acontecimento do supermercado foi uma triste dúvida. Será que estamos tão bem treinados, que hoje só a loucura pode hoje provocar alterações no rumo da nossa vida cotidiana e do nosso destino histórico?


Folha de S.Paulo

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