"Criou-se um mito de que
se não reprovar, o aluno não aprende"
"A escola não pode ter
medo dessa abertura à sociedade, como os grêmios estudantis."
"Essa, aliás, deve ser
a reflexão de todo o professor em qualquer nível:
"Esse tipo de conteúdo é fundamental para que o aluno
desenvolva uma habilidade?"
"O processo de avaliação
na Progressão Continuada tem de ser diário."
"O professor precisa gostar
de dar aula, gostar de trabalhar a heterogeneidade."
"O equívoco é falar que
com a Progressão Continuada o aluno não está aprendendo."
A Progressão Continuada está alcançando seus objetivos?
Chalita: A Progressão Continuada é muito importante
em termos de ensino, mas enfrentou problemas na sua
implantação.
Quando foi implantada na Secretaria Municipal de Educação
de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina, com Paulo
Freire como secretário da Educação (depois substituído
por Mário Sérgio Cortella), também enfrentou todos
os problemas de algo que é novo, que quebra paradigmas.
Paradigma, por exemplo, de que se o aluno não for
reprovado, não aprende.
É o mito da reprovação. Algo que faz mal, inclusive,
a esse aluno pois se trata de uma tentativa de homogeneização
do ensino.
Hoje, discute-se quais os caminhos que podem aperfeiçoar
a Progressão Continuada. Podemos citar a capacitação
de professores, um maior investimento em material
paradidático, presença de psicopedagogo na escola,
atuação mais intensificada na recuperação que deve
acontecer paralelamente ao processo de aprendizagem,
repensar o SARESP - que hoje estigmatiza a escola
com cores e que contraria um pouco a proposta de uma
educação heterogênea.
Na prática, o que pode ser
feito para aperfeiçoar a Progressão Continuada?
Devemos partir de algumas estratégias. Por exemplo,
a capacitação de professores deve ser contínua e essa
capacitação precisa trabalhar as condições de heterogeneidade
das salas de aulas.
Deve levar o professor a repensar a forma de dar aula.
A reavaliar seu trabalho com um aluno do século 21.
Um aluno que é fruto da Internet, da televisão, de
uma gama de informações, que não dá para o professor
manter a mesma postura de tempos atrás.
Hoje, a escola precisa de uma abertura para a família.
Se no início a Progressão Continuada fosse melhor
explicada, certamente os pais teriam menos dificuldades
de compreender seu significado.
O acompanhamento familiar, de ONGs e da comunidade
dentro da escola auxiliam o professor a compreender
o que é uma escola cidadã. Uma escola que não busca,
sob o ponto de vista da avaliação, medir a capacidade
de memorização do aluno, mas sim a de avaliar as habilidades
desenvolvidas, como: compreensão de texto, leitura
de mundo, produção de conhecimento. Uma escola que
respeita a diversidade cultural do aluno e dos vários
mundos que existem em São Paulo.
Dentro do conceito de Progressão Continuada, temos
de levar em conta também o conceito de autonomia nas
escolas. Não podemos imaginar que todas as escolas
dêem o mesmo tipo de conteúdo num Estado como São
Paulo, que tem 6,1 milhões de alunos.
A Deliberação do Conselho
Estadual que propôs a Progressão Continuada defendia
um amplo debate sobre o assunto. Debate que não ocorreu.
Por que esse debate está sendo retomado agora no último
ano do governo Alckmin?
O governo não pode parar durante um ano, senão partimos
do conceito que no primeiro ano não dá para fazer
nada porque estamos conhecendo a máquina; no segundo,
estamos aperfeiçoando isso; o terceiro é quase o último
ano; e, no último ano, não se faz nada. Por isso,
promovemos um fórum sobre Progressão Continuada para
buscar algumas conclusões pontuais.
O que então fazer a partir desse momento?
Não vamos lamentar o tempo em que esse debate não
pôde ocorrer. Por outro lado, talvez tenha sido interessante
esse intervalo para uma maturidade maior das pessoas
em relação ao tema, para que as questões pudessem
evoluir.
Hoje falamos muito em paradigma, a palavra da moda,
e isso é fundamental: é preciso quebrar paradigmas.
Criou-se um mito de que se não reprovar, o aluno não
aprende.
Outro mito: o aluno da 1ª a 4ª série vai diariamente
à escola e não aprende. Como aprová-lo? A premissa
está errada. Se ele vai à escola todos os dias e não
aprende, alguma coisa está errada e não é o aluno
que vai ser penalizado. Concordar com o mecanismo
de força do professor do tipo "Ou você faz o que estou
mandando ou eu te reprovo", estamos afirmando que
a educação não é sedutora, não é envolvente e não
constrói habilidades.
Mas é preciso também ensinar o professor a fazer
isso ou não?
Sim. Nós tivemos uma capacitação no Parque Hopi Hari,
reunindo os dirigentes de ensino, os ATPs (Assistentes
Técnico Pedagógicos), os supervisores das 89 Diretorias
de Ensino de São Paulo. Foi uma experiência fantástica.
Refletimos como é que se pode mudar esse trabalho
dentro de uma sala de aula.
Promovemos também a primeira teleconferência com os
230 mil professores da rede sobre a vulnerabilidade
do adolescente, um tema que preocupa todo o educador:
"Como enfrentar um adolescente que é diferente a cada
dia?"
Isso acompanha outros problemas: "Como tornar minha
aula mais agradável para que a aprendizagem aconteça?"
Esse processo de capacitação via teleconferência deve
ser realizada a cada duas ou três semanas.
Estamos fazendo uma pesquisa com os professores da
Rede para sentir quais são os pontos mais complexos
que precisam ser trabalhados em termos de capacitação,
no que se refere, de forma geral, à postura do professor,
à didática da sala de aula, à relação professor-aluno,
aos problemas sociais, à escola cidadã.
Outro processo importante: elegemos a disciplina Português
para ser trabalhada numa ampla capacitação com todos
os professores da Rede, em uma parceria com a PUC.
Como não podemos capacitar todos os professores de
todas as áreas, escolhemos algumas áreas que trabalham
a questão educativa de forma transversal. Os professores
serão capacitados presencialmente para trabalhar o
conceito de leitura, interpretação e produção do conhecimento.
Todos os professores de Língua
Portuguesa vão passar por esta capacitação?
Todos, até o final do ano. Além disso, com a Unicamp,
preparamos uma capacitação para o ensino religioso.
Queremos trabalhar no ensino religioso valores como
o conceito de cidadania, de ética. Todos os 4.800
professores de ensino religioso vão passar por esta
capacitação, presencial, nas 89 diretorias de ensino.
Além disso, temos o Circuito Gestão, que são pólos
onde são capacitados os diretores de escolas, vice-diretores,
professores coordenadores, cujo enfoque maior está
sendo a Escola Aberta.
Não vamos transformar a escola num ativismo, com palestras
diferentes todos os dias. Queremos que os pais tenham uma
participação mais efetiva, de forma mais envolvente.
Se o pai ou a mãe são convocados na escola para levar
bronca pela postura dos filhos, eles não vão mais.
Mas se forem envolvidos num processo em que eles percebem
que a participação é fundamental, a postura muda.
A escola não pode ter medo dessa abertura à sociedade,
como os grêmios estudantis. Tenho visitado muitas
escolas e nas que possuem grêmios percebe-se uma maior
preocupação com a escola.
Nela, você está dividindo poder, dividindo responsabilidades.
Este conceito de que o aluno pertence à escola e a escola
pertence ao aluno é importante para que ele não destrua
a escola. E isso é educação! Volto a insistir nesse tema.
Educação não é só ensinar Língua Portuguesa, Matemática,
Ciências, Biologia.
Não se pode desconsiderar a história do aluno.
Às vezes, o professor está ensinando como se o aluno
não tivesse nenhuma informação e hoje o aluno tem
muita. A gente vive numa época em que a informação
é abundante. Agora, transformar a informação em conhecimento
é outra história. Transformar a informação em aprendizagem
significativa é o grande desafio do professor.
Quando se fala em Progressão
Continuada, alguns educadores afirmam que o objetivo
é manter o aluno na sala de aula. E que é necessário
avaliar esse aluno. Mas primeiro não é preciso ver
como estão ocorrendo as aulas para depois pensar na
avaliação?
Exatamente. Disso parte uma interrogação que precisamos
ter: "O que eu espero de um aluno? Que tipo de habilidades
esse aluno precisa desenvolver?" Essa, aliás, deve
ser a reflexão de todo o professor em qualquer nível:
"Esse tipo de conteúdo é fundamental para que o aluno
desenvolva uma habilidade?"
Todos os alunos têm aula de inglês ao longo de sua trajetória
escolar e sempre iniciam seus estudos com o verbo 'To be'.
Mas, muitos terminam o Ensino Médio e não sabem nem
o verbo 'To be'.
O processo de aprendizagem começou de forma incorreta.
O que você espera de um aluno quando se estuda inglês?
Ou história? Ou geografia?
Outro dia, na inauguração de uma quadra, notei uma
menina com um bebê no colo. Eu perguntei: "Nossa,
tão moça já tem um filho?" E ela respondeu: "É o quinto!"
É uma menina que passou pela escola. Estudou corpo
humano, ciências, mas isso não foi significativo porque
o que foi ensinado não tinha nada a ver com a vida
dela. Hoje, a educação não pode ser fechada a essas
questões. Não podemos imaginar o professor falando
sem parar, o aluno ouvindo, mas nada vai ser significativo
por que ele não está atento.
O processo de avaliação dele não vai significar absolutamente
nada. Esta questão é importante.
Aconteceram muitas capacitações relacionadas à Progressão
Continuada. Muitas capacitações no Circuito Gestão,
parcerias com a PUC, UNESP e a USP, na formação de
sete mil professores. Tudo isso já estava acontecendo.
Mas é preciso intensificar! Quando falamos sobre isso,
não queremos colocar mais responsabilidades no professor,
mas a solução está aí.
Se o aluno chega à 4ª série
e não foi alfabetizado. Ele vai ter um acompanhamento
mais individualizado?
Isso não pode acontecer. Se acontecer, o que é uma exceção,
ele faz mais um ano. Esse ano não é repetição da quarta
série. É a retomada de todo o ciclo. Ficará mais um ano
refazendo um módulo especial, que é uma "revisão" da 1ª
a 4ª série. Não se fala em repetição. Ele vai ter um acompanhamento
e, depois, uma nova avaliação.
Não podemos esquecer que o processo de avaliação na
Progressão Continuada tem de ser diário. O professor
deve acompanhar diariamente seu aluno e o processo
de avaliação deve ser múltiplo. Eu não avalio o aluno
só com uma prova escrita ou de múltipla escolha, prova
oral, trabalho em grupo ou leitura de textos. Eu avalio
todas essas coisas ao mesmo tempo.
Quando você tem uma múltipla possibilidade de avaliação,
você tem uma múltipla possibilidade de análise das
habilidades desse aluno. Que habilidades se espera
do aluno?
Talvez não seja importante conhecer os nomes de todos
os rios da antiga Iugoslávia. Se ele souber, tudo
bem. Ou então, que ele saiba todas as fórmulas de
trigonometria de cor. Ou a regência de verbos de cor,
dependendo do ciclo em que ele está. Mas é importante
que ele seja capaz de interpretar o mundo, de ler
um texto e detectar elementos presentes nesse texto.
E o professor hoje não está capacitado para realizar
esse tipo de avaliação?
Eu não diria que não está capacitado. A rede é muito
grande e encontramos professores extraordinários em
locais onde a Progressão Continuada acontece de forma
brilhante, com uma participação efetiva da comunidade.
Na época da Copa do Mundo, visitei várias escolas
em que Copa foi um tema transversal. Eles trabalharam
as culturas dos povos que estavam participando da
Copa: roupa, religião, tradição. Isso é uma educação
significativa.
Certa vez, cheguei numa cidade do interior e o prefeito
havia sido assassinado. O professor havia preparado
uma aula sobre o corpo humano, mas os alunos queriam
falar da morte do prefeito. Então, esqueça aquela
aula e fale de alguma coisa que é significativo para
o aluno.
Aí a aula fica envolvente! Porque se o professor repete
a mesma aula, corre o risco de perder a condição de
ser referencial para os alunos. Esse é um problema
na educação: quando o aluno deixa de admirar o professor.
Com a Progressão Continuada, o professor não está
sobrecarregado, com muitas responsabilidades? Existe
uma equipe de apoio ao professor?
A escola conta com o professor coordenador e os ATPs.
O psicopedagogo pode ser uma idéia. Percebi várias
colocações referindo-se à dificuldade de aprendizagem.
Seria interessante ter um acompanhamento psicopedagógico
em cada diretoria de ensino ou em cada três escolas,
por exemplo. É uma sugestão interessante.
Mas é claro que o professor tem muita responsabilidade,
assim como o diretor da escola, que tem de abrir os
portões das escolas.
Todo mundo tem responsabilidades, mas a única alternativa
está na Educação. Se você espera um cidadão que respeite
o trânsito, que não jogue papel no chão, que tenha uma postura
elegante com as pessoas, que não seja agressivo, tudo isso
também se aprende na escola.
A família, que é uma base educativa interessante,
não está fazendo sua parte. E temos insistido para
que ela participe mais porque, por melhor que seja
a escola, nunca vai suprir a carência de uma família
ausente.
Há outra questão que é a competência do professor
na sala de aula. Espera-se pelo menos que ele tente
dar uma aula mais agradável. Se o professor começa
a refletir essas questões, já melhora sua forma de
dar aula.
Quando terminamos a primeira teleconferência, percebemos
uma resposta no mesmo dia. Eu sei que depois de duas
semanas, esfria tudo de novo e eu tenho de fazer outra
teleconferência.
Mas é importante o professor reconhecer a necessidade
de uma relação melhor com o aluno e mudar sua prática.
Antigamente havia o mecanismo de reprovação. Hoje
o mecanismo tem de ser o de alguém mais experiente
que dialoga, que mostra ao aluno o que ele pode ser,
tudo o que pode desenvolver. Isso desperta a curiosidade
dos alunos. O que é difícil porque hoje os alunos
detém uma enorme quantidade de informação.
Hoje uma criança assiste de três a quatro horas de
televisão todos os dias, segundo afirmou Cortella.
Ao entrar na 1ª série do Ensino Fundamental, essa
criança já assistiu pelo menos cinco mil horas de
televisão, mas na escola ela aprende que a "Pata Nada".
É claro que não é instigante, não é envolvente. O
tipo de abordagem está incorreto.
Antigamente o professor detinha a informação. Hoje
não a detém mais, assim como não detém a socialização
do processo de conhecimento e isso exige uma humildade
do professor: "Eu não sou o dono da verdade. Estou
aprendendo com vocês."
Também não falta empenho do professor?
Eu diria que na maioria das escolas não falta empenho.
Mesmo quando falamos daquelas em que há alunos que
não conseguem escrever e que são casos pontuais -
e se são pontuais dentro de 6,1 milhões de alunos
significa que os professores são bons. Há escolas
de excelência, mesmo!
Talvez tenhamos uma parcela de 15% da rede descompromissada
com o processo educativo. Esse dado corresponde ao
número de professores que faltam exageradamente. Acho
que podemos melhorar isso.
Certamente não podemos generalizar e dizer que os
professores são ruins, porque 85% estão tentando melhorar.
Também não é fácil melhorar porque talvez eles não
tenham recebido a formação de uma escola cidadã na
faculdade, nem aprenderam a realizar um trabalho de
ciclos. Hoje ele vai ter de mudar o tempo todo.
Em cada turma que começa, o professor tem de adotar
uma outra prática e isso não é fácil. Mas muitos deles
são entusiasmados com essas mudanças. Você oferece
um novo curso e eles se inscrevem em tudo. Querem
aprender, mudar a técnica. Uma parte, no entanto,
de certa forma se acomodou e não acredita em nada.
E dentro da menor parte, tem aquele que é do contra.
Isso é muito ruim.
Como o professor pode comprar
essa idéia?
O professor precisa gostar de dar aula, gostar de
trabalhar a heterogeneidade. Deve saber que cada aluno
tem uma história e precisa respeitá-la. Entender o
que é isso e que todo mundo pode aprender.
Isso envolve tempos diferentes de aprendizagem, habilidades
diferentes, mas que todo mundo pode aprender.
Há pesquisas de professores
afirmando que é grande o número de alunos com dificuldades
de aprendizagem, principalmente nas escolas de periferia.
O que está acontecendo?
Se você tem uma sala de aula que a gente chama de
inclusiva, há múltiplos problemas que acontecem conjuntamente.
O aluno pode ter dificuldade de enxergar o quadro
negro, de ouvir a aula, ter problemas em casa. Mas
aí entra o trabalho do professor. Ele tem que perceber
o trabalho dos alunos o tempo todo.
A dificuldade de aprendizagem é um problema que a
escola particular também tem. É comum os pais reclamarem
que o filho está na oitava série e que não sabe escrever
direito. Por quê? Porque o professor no mundo inteiro
passa por uma revolução.
Ou ele reavalia sua forma de trabalhar com os alunos
ou esse tipo de aprendizagem não vai significar nada.
Hoje, há advogados que não sabem escrever. Cursaram
Ensino Fundamental, Médio, faculdade e não sabem escrever.
Têm deficiências básicas e não havia Progressão Continuada
naquele tempo.
O equívoco é falar que com a Progressão Continuada o aluno
não está aprendendo. Não é verdade! Essa é uma oportunidade
de melhorar a aprendizagem dele.
Antes, ele não aprendia e ia embora da escola, o que
é muito pior sob o ponto de vista da construção da
cidadania - porque é pior fora da escola do que dentro
dela. Antes o objetivo era melhorar a presença do
aluno na sala de aula, agora temos de melhorar a qualidade
de ensino.
Veja também
o discurso de encerramento Fórum "Progressão Continuada:
Compromisso com a Aprendizagem", feito pelo secretário Gabriel
Chalita.
Entrevista Coletiva do dia 25 de junho
de 2002.