Algumas retrospectivas
No início do século XX ficou evidente que as escolas
não poderiam continuar convivendo com relações
pedagógicas tão autoritárias como as até
então existentes, herdadas de modelos pedagógicas
absolutamente ultrapassados. O que elas pressupunham? Que a
criança não passava de um homúnculo com
todas as habilidades e competências de um adulto, portanto,
responsável pelo seu processo de aprendizagem. Para essas
velhas teorias o centro da aprendizagem era o professor, o rei-sol,
onisciente, e os alunos, passivos e mudos, deveriam gravitar
ao seu redor. A disciplina em sala de aula deveria ser mantida
a qualquer preço e os castigos físicos, a palmatória,
a genuflexão sobre o milho, bem como as humilhações
psicológicas, as famosas orelhas de burro colocadas no
aluno que ia mal, imitavam as relações autoritárias
e anti-democráticas existentes entre o poder e os seus
súditos, assim como entre pais e filhos. Este clima de
terror era coroado com a famosa reprovação em
massa. O bom professor, pasmem, era aquele que reprovava muitos
alunos e a escola, bem como o professor, eram eximidos de qualquer
responsabilidade pelo fracasso escolar. Esse comportamento punitivo
chegava mesmo às raias do exagero de reprovar um aluno
por um simples décimo, inviabilizando muitas vezes toda
a vida escolar futura de um jovem ou de uma criança.
Mais do que se sentir rei-sol, certamente consolidava-se no
professor um sentimento quase divino de poder dispor, a seu
bel prazer, do destino de seus alunos, que se tornavam joguetes
nas mãos do acaso.
Como uma concepção tão às avessas
sobrevivera durante séculos? Ora, para todos aqueles
que leram o livro "O Nome da Rosa" de Umberto Ecco
ou assistiram ao filme do mesmo nome a explicação
é clara. O saber era propriedade de uma pequena elite
que queria tornar o acesso ao mesmo o mais difícil e
inóspito possível. Afinal, como o livro bem mostra,
saber é poder. Ora, a melhor forma de atingir
tal objetivo, isto é, afastar a massa ignara do saber,
era tornar a escola insuportável e inatingível,
tratando o aluno da forma mais rígida possível,
desestimulando-o da aventura do conhecimento reservada a uns
poucos.
A partir do início do século XX, com o fim das
monarquias européias, a adoção de modelos
democráticos de governo nos países ocidentais,
o impacto do desenvolvimento industrial e urbano que levou a
um enorme crescimento da classe média e do proletariado,
as classes dirigentes foram obrigadas a aceitar o compromisso
de democratização da informação
e do saber, proposto já desde a Revolução
Francesa. Neste processo, a escola passa a desempenhar um papel
fundamental, principalmente para os grupos mais pobres da população
que só terão condições de acesso
ao saber sistematizado, através dos serviços públicos
ofertados pelo Estado no papel de compensador das desigualdades
sociais.
No decorrer do século, a concepção de escola
do passado começa a ruir, a ser demolida violentamente
graças a diferentes contribuições científicas.
Foram os avanços da Psicologia do Desenvolvimento e da
Aprendizagem, da Neurologia, da Epistemologia Genética,
da Pedagogia Moderna, do Sócio Construtivismo que mostraram,
com enorme ênfase, que a aprendizagem das crianças
tem características próprias, diferente da dos
adultos; que o processo de aprendizagem é progressivo
e cumulativo e nem sempre ocorre de forma linear, mas sim por
saltos; e que o medo e a passividade não geram aprendizagem
inteligente, ao contrário, são seus inimigos.
Assim, ao modelo de relação pedagógica
autoritário, elitista e excludente até então
existente irá contrapor-se um radicalmente novo, onde
o ser que aprende - o aluno - passará a ser o centro
do processo de aprendizagem que deverá estimular o aluno
à participação, atividade, pesquisa e comportamento
crítico.
Importantes educadores e estudiosos contribuíram para
a sua construção. Vale lembrar aqui: Montessori,
Decroli, Freinet, Dewey, Piaget, Wallon, Anísio Teixeira,
Bourdieu e Passeron, Ana Maria Poppovic, Paulo Freire, Emília
Ferreiro entre vários outros. Propõe eles uma
escola democrática marcada por relações
pedagógicas de inclusão, troca, respeito e estimulação.
O aluno deve ser respeitado, suas características bio-psico-sociais
consideradas no processo de planejamento, desenvolvimento e
avaliação do ensino. Ao professor é atribuído
o importante papel de mediador, facilitador do processo de aprendizagem,
isto é, o de criar as condições necessárias
e adequadas de exposição e apropriação
do conhecimento pelos alunos. O papel do professor não
será menos importante do que era no passado, mas implicará
maior responsabilidade: zelar e garantir a aprendizagem do educando.
Não basta ensinar. Condição necessária
à função do professor será a de
levar o aluno a aprender. Da mesma forma, a direção
escolar e o sistema de supervisão do ensino passarão
a ser solidariamente responsáveis com o professor pela
garantia de aprendizagem das crianças e jovens.
Logo após a segunda guerra mundial vários países
se dão conta da necessidade urgente de adotar um novo
modelo de educação e mudar radicalmente a cultura
da escola. Independente das dificuldades do pós-guerra,
rompem com o modelo anterior e adotam o sistema de progressão
continuada da aprendizagem para melhor assegurar a permanência
com sucesso das crianças na escola e a formação
de cidadãos críticos e criativos. Esta mudança
tem algumas premissas básicas fundamentadas nas ciências
modernas. São elas:
- o ser humano, desde o início de sua vida apresenta
ritmos e estilos significativamente diferentes para realizar
toda e qualquer aprendizagem - andar, falar, brincar, comer
com autonomia, ler, escrever, etc;
- toda aprendizagem, inclusive a cognitiva, é um processo
contínuo, que ocorre em progressão e não
pode nem deve ser interrompida ou sofrer retrocessos, pois isto
implica prejuízos enormes, tanto no que respeita à
auto-imagem do aprendiz como na sua motivação
para aprender;
- toda criança normal, sem traumas ou problemas mentais,
quando exposta a situações motivadoras de ensino
é capaz de aprender e avançar em relação
a seus padrões anteriores de desempenho;
- aprendizagens cognitivas exigidas pela escola podem ocorrer
com maior ou menor rapidez em função das características
e estimulação dos ambientes sociais de onde as
pessoas provêm;
- o desempenho cognitivo e acadêmico de crianças
e jovens de diferentes extratos sociais tende a atingir, nos
anos iniciais de escolaridade, patamares médios bastante
semelhantes, se respeitadas as dificuldades e obstáculos
iniciais dos alunos e garantida a aprendizagem continuada com
reforço e orientação para aqueles com maiores
dificuldades.
De acordo com esta nova filosofia educacional torna-se, por
exemplo, inadmissível à escola, ao final de um
ano escolar, ou melhor de meros 10 meses, considerar um aluno
como inepto total porque não aprendeu o que era "idealmente"
esperado, num intervalo de tempo teoricamente "ideal".
Ela exige respeito aos diferentes ritmos de aprendizagem, característica
própria dos seres humanos.
Será impossível, pois, para a nova escola, aceitar
a concepção do passado de que o aluno deve ser
reprovado, se não dominou bem divisão, mesmo que
tenha aprendido tudo em português, ciências, história
e geografia. Para o novo modelo de escola, existe uma incompatibilidade
total, uma conciliação impossível entre
as idéias de respeito ao educando de Paulo Freire ou
a de aprendizagem sócio-construída de Emilia Ferreiro
com a prática escolar existente de que caso o aluno fosse
reprovado, toda aprendizagem feita por ele durante aquele ano
era praticamente desconsiderada, "apagada" de sua
memória e depois refeita no ano seguinte, como se esse
aluno fosse uma peça defeituosa numa linha de montagem
industrial mecanizada. Durante todo o século passado,
educadores ilustres nos legaram uma literatura educacional abundante
mostrando que um aluno assim humilhado, desrespeitado e cognitivamente
estuprado, passaria a comportar-se ou como um pequeno robô,
amedrontado e passivo que a escola altera o crescimento intelectual
de forma perversa, ou como um marginal revoltado que, saudavelmente,
para proteger sua auto-estima agride e evade-se desta escola
que personaliza o mais odioso tipo de autoritarismo.
No entanto, este modelo totalmente questionado já no
início do século XX por valorizar o medo, o sofrimento,
a humilhação, o fracasso, era muito apreciado
e aplicado na chamada "boa" escola brasileira dos
anos 50. Ele certamente é um dos maiores responsáveis
pelo fato chocante, que parece não fazer parte da memória
dos educadores e dos meios de comunicação de massa,
de que o Brasil, nos anos 50, tinha somente 36% da população
de 7 a 14 anos na escola. A tão propalada boa escola
de antigamente era aquela em que a maioria ficava fora e a que
ficava dentro fracassava em massa. Perdas de 60% ou mais (evasão
e reprovação) eram consideradas absolutamente
normais. E parece existir um pouco de cinismo quando atualmente
nos admiramos com as altas taxas de analfabetismo da população
brasileira com 40 anos ou mais. Precisamos no Brasil é
ter coragem de enfrentar, sem saudosismos elitistas, o que há
por fazer e me parece oportuno parafrasear aqui o educador português
Rui Canário que recentemente esteve em São Paulo
num congresso educacional e que numa entrevista dada ao jornal
O Estado de São Paulo (em 29/09/00) afirmou: "as
pessoas criticam a educação hoje achando que ela
foi melhor um dia". Concordo com ele. Só é
possível defender que aquele modelo de escola excludente
do passado era bom por desinformação ou má
fé.
Nas três últimas décadas do século
XX a população brasileira "arrombou"
as portas da escola. O crescimento das matrículas foi
estrondoso. No entanto, por mais esforços que alguns
educadores tenham feito, haverá muita dificuldade em
mudar a cultura dessa escola elitista, autoritária, herdada
do século XIX e serão usados todos os subterfúgios
e práticas para afastar os alunos do acesso ao saber.
A mais avassaladora delas será a reprovação,
esta sim o instrumento por excelência a serviço
da ignorância e da exclusão social. Em relação
ao acesso ao saber pode mesmo ser comparada aos fornos crematórios
do III Reich.
Nos idos dos anos 80, foram abundantes os estudos e pesquisas
mostrando os efeitos perversos e pouco producentes da reprovação.
Sergio Costa Ribeiro, físico e ilustre pesquisador, precocemente
afastado de nós, produziu alguns dos trabalhos mais significativos
na área, denunciando que o acesso finalmente conseguido
pela população nas escolas públicas era
enganoso pois a soma das taxas de evasão e reprovação
continuavam tão altas quanto às dos anos 50. A
diferença, dizia ele, é que agora, ao invés
de milhares eram milhões de alunos, ano a ano, sistematicamente
afastados das escolas. Os estudos de Ribeiro mostram com clareza
que a evasão era o sub-produto das múltiplas repetências
a que as crianças e jovens eram submetidos, ou seja,
eles denunciavam que 50% da população escolar
abandonava, evadia-se da escola depois de ter ficado de 6 a
8 anos "estacionada" na segunda ou terceira série
do ensino fundamental e que de cada 100 crianças menos
de 10 completavam o ensino fundamental em 8 anos. É possível
acreditar que toda a população escolar deste país
estivesse retardada mentalmente frente à escola? Ainda
em 1995, mais da metade de toda população brasileira
de 7 anos era reprovada na primeira série. Nenhum outro
país miserável da América Latina tinha
estatísticas tão perversas. Entretanto, convivíamos
cínica e tranqüilamente com essa situação
de perdas enormes de auto-estima nacional, de capital humano
e financeiro que deprimiam cada vez mais a situação
educacional do país.
Os anos 80 e 90 também foram férteis em pesquisas
sobre o rendimento escolar dos alunos associados a um conjunto
enorme de variáveis escolares e sócio-econômicas.
Tive o privilégio de, como pesquisadora universitária
e professora doutora na área de currículo e avaliação,
participar de várias delas, juntamente com pesquisadoras
ilustres como Ana Maria Poppovic, Bernardete Gatti, Guiomar
Namo de Mello. As pesquisas com acompanhamento longitudinal
de grupos de alunos das escolas públicas mostravam, em
São Paulo e em outros Estados do Brasil, que a maioria
deles, a cada ano de repetência, ia desempenhando cada
vez pior, em decorrência das situações desestimuladoras
a que eram submetidos e da diminuição significativa
da sua auto-confiança como aprendiz. A maior parte das
pesquisas na área apontava também que fatores
como a duração do período escolar, várias
mudanças ou falta dos professores num ano escolar, existência
de materiais didáticos na sala de aula bem como presença
de aulas de recuperação sistemáticas eram
fatores muito mais determinantes no desempenho bem sucedido
dos alunos.
Entretanto, raras vezes ocorreu às elites ou aos administradores
que dirigiam o sistema educacional questionar esse modelo de
escola de reprovação secular, pois afinal, se
ela fosse tão boa já deveríamos ser um
país de sábios. Somente na rede estadual paulista,
no início da década de 90, cerca de 1.5 milhão
de alunos, a cada ano, eram expulsos ou fracassavam na escola.
Desde o final dos anos 80 os índices de evasão
haviam atingido patamares absurdamente altos. E isto ocorria
no mais rico e pujante Estado da América Latina, onde
cerca de 90% dos professores já tinham formação
universitária. Imagine a exclusão que ocorria
no resto do país. E contraditoriamente, ficamos atualmente
chocados com os índices de violência e miséria
do país, sem parecer ou querer nos dar conta de quanto
tem contribuído para estes índices o modelo de
escola que exclui e violenta seus alunos, com a qual convivíamos
com muito pouco questionamento.
Vale a pena, porém, lembrar algumas tentativas feitas
no Brasil, já no final do século XX, para superar
este quadro calamitoso. Em 1968, o emérito professor
da USP, liberal e democrata, José Mario Pires Azanha,
colaborando com Ulhoa Cintra, na Secretaria da Educação,
implanta pela primeira vez no Brasil, no curso primário
das escolas estaduais paulistas, os chamados nível I
e II, ou seja, a passagem da primeira para a segunda série
sem reprovações, assim como da terceira para a
quarta séries. Estávamos no apagar das luzes de
um período democrático e, por coincidência,
o Gabinete cai por ser considerado subversivo. Em 1984, respirando
os novos e raros ares de abertura democrática, o Governador
Montoro implanta o ciclo básico nas escolas estaduais
paulistas, no que é imitado por outros Estados, inclusive
Minas Gerais. O objetivo? Dar à criança a possibilidade
de completar sem retrocessos seu processo de alfabetização.
Há resistência dos professores que acreditam perder
a autoridade por não poder reprovar criancinhas de sete
anos e o Governo não dá continuidade ao processo
de ciclos, como propusera inicialmente. No início dos
anos 90, já com o sistema democrático mais consolidado,
a administração da educação municipal
dirigida por Paulo Freire introduz, semelhante ao que pretendia
Montoro, o sistema de 3 ciclos no ensino fundamental das escolas
da capital paulista, o que também ocorre em várias
outras capitais. A política de introdução
dos ciclos surgiu e se fortaleceu nos poucos momentos democráticos
que tem ocorrido neste país. Talvez isto justifique o
seu atraso. Acredito que essas eminentes figuras que propuseram
a aprendizagem em progressão continuada por ciclos não
são passíveis de serem identificadas como demagogos
ou malandros como pode a alguns parecer.
Os desafios do século XXI
Nos últimos anos do século XX, sob o impacto
das enormes mudanças ocorridas na sociedade, do avanço
da tecnologia e meios de comunicação de massa,
da constatação cada vez mais óbvia de
que a sociedade do futuro será a do conhecimento e
que este determinará a riqueza das nações,
é promulgada uma nova Lei de Diretrizes e Bases Nacionais
(LDB) aprovada em 1996, sob a inspiração do
educador Darcy Ribeiro. A nova LDB foi exaustivamente debatida
pela sociedade e trouxe os primeiros ventos de modernização
e real democratização para o sistema educacional
brasileiro, recebendo a aprovação do Congresso
Nacional, das entidades de classe e de todos os diferentes
partidos políticos.
É, portanto, na LDB de 1996, que já estão
inscritas e garantidas as diferentes formas de organização
do ensino que ampliam as possibilidades de avanço e
respeito à aprendizagem dos alunos. É nela que
está claramente proposta a aprendizagem em progressão
continuada na forma de ciclos. Lá estão apontadas
também as formas de fazê-la com sucesso: ampliação
da jornada escolar, a recuperação paralela e
contínua dos alunos com dificuldades de aprendizagem,
as horas de trabalho coletivo remunerado do professor para
avaliação e capacitação; a proposta
de esquemas de aceleração de aprendizagem para
alunos multi-repetentes com grande defasagem idade-série;
além do direito à reclassificação
de estudos para todos aqueles que conseguiram aprender, independentemente
da freqüência às escolas. É uma lei
revolucionária, que buscava provocar enormes mudanças
no sistema educacional brasileiro, na medida em que refletia
o espírito de seu patrono: criar condições
de acesso ao conhecimento para toda a população,
o que até então a escola brasileira fora incapaz
de fazer.
No caso específico de São Paulo, em 1996, quando
a LDB estava em discussão, algumas de suas propostas
já começaram a ser postas em prática.
Foram garantidas na rede estadual paulista algumas condições
básicas para a melhoria do ensino: a ampliação
da jornada escolar de 720 para 1000 horas, para 90% dos alunos
do diurno, e para 800 horas no período noturno; duas
novas modalidades de recuperação paralela para
todos os alunos com dificuldades de aprendizagem, ou seja
tanto a semanal, de 3hs fora do horário regular de
aulas, para corrigir deficiências prematuramente, como
ao final do ano, no mês de janeiro, com 100 de duração,
para os alunos faltosos ou com maiores dificuldades. Ao lado
dessas medidas, foi instituído para todos os professores
o pagamento de horas de trabalho na escola, porém fora
da sala de aula, para capacitação e orientação
sobre reforço escolar. Para que isto ocorresse, todas
as escolas passaram a contar com um ou dois coordenadores
pedagógicos, antiga reivindicação do
magistério, de modo a acompanhar o trabalho dos professores
juntamente com as Oficinas Pedagógicas, órgãos
descentralizados de capacitação. Estas Oficinas
contaram para os seus projetos com os resultados do sistema
de avaliação do rendimento escolar (SARESP)
feito por instituições externas à administração,
que serviram de suporte e tomada de decisão para o
investimento de recursos da ordem de 30 milhões de
reais em cursos de capacitação de professores
ofertados pelas universidades paulistas.
Essas medidas provocaram quedas drásticas nas taxas
de evasão. Deixaram claro que os alunos e suas famílias
percebiam quando valia a pena ficar na escola porque o aluno
tinha realmente mais chances de se recuperar, ter sucesso
e aprender. Foi somente no início de 1998, que o Conselho
Estadual de Educação, em função
das mudanças ocorridas, propôs a adoção
para o sistema de ensino paulista público e privado,
da aprendizagem em progressão continuada. A proposta
só abrangia o ensino fundamental cujos oito anos deveriam
ser organizados em dois ciclos, com reprovações
ocorrendo ao final de qualquer ano escolar, no caso de faltas
em excesso ou abandono da escola. Enfatizava o Conselho Estadual
a importância de avaliações freqüentes
e contínuas da aprendizagem dos alunos para embasar
as aulas de recuperação paralela ou nas férias.
Ao final dos dois ciclos, caso o aluno apresentasse problemas
de aprendizagem, deveria ficar retido mais um ano na escola
para um cuidadoso trabalho de recuperação. Tal
proposta objetiva garantir às crianças paulistas
a possibilidade de sucesso na escola e o respeito ao seu desenvolvimento
intelectual e emocional.
No entanto, porque a organização da escola em
ciclos irá assustar e ameaçar alguns setores
da sociedade? A organização seriada da escola
que tínhamos não levava a maioria dos alunos
a aprender. As críticas à escola eram contundentes
e as perdas fantásticas. A quem incomoda a sua mudança?
Em nome de quem e quais subterfúgios ainda serão
usados para atacar o sistema de ciclos?
É preciso concordar, em primeiro lugar, que causa estranheza
o fato de que a idéia de fazer uma criança continuar
aprendendo, progredindo de onde parou, que é o normal
para toda e qualquer aprendizagem, só na escola é
encarada como uma aberração. Porque será
que isto ocorre? Porque demanda uma sistemática mais
trabalhosa, detalhada, cuidadosa e criteriosa de avaliação?
Certamente. A Secretaria Estadual de Educação,
no entanto, desde 1984, ou seja, desde a introdução
do ciclo básico, já desenvolvera uma série
de instrumentos, publicações, fichas detalhadas,
programas de TV e vídeo - consubstanciados no famoso
projeto Ipê - para auxiliar escolas e professores na
avaliação, acompanhamento e recuperação
dos alunos. Pode-se questionar se no passado existiam condições
para esse tipo de avaliação. Porém, desde
1996 elas existem. São os horários de recuperação
paralela semanal e ao final do ano. São as horas de
trabalhado remunerados do professor na escola mas fora da
sala de aula. São as horas ampliadas em 40% para a
maioria dos alunos bem como a capacitação dos
professores feita pela Universidade e escolhida pela própria
Diretoria de Ensino e suas escolas.
Porque quando o aluno multirrepetente ficava vários
anos estacionado numa mesma série ninguém se
incomodava? Será porque era mais fácil camuflar
o fato de que após 5 ou 6 anos de passagem pela escola
ninguém havia, com seriedade, se responsabilizado pela
aprendizagem desse aluno? Ora, por esse aluno haviam sido
responsáveis pelo menos 5 professores, um diretor,
um vice-diretor, um coordenador pedagógico, um supervisor
da escola, três a quatro assistentes pedagógicos
da Oficina Pedagógica local e um dirigente regional
de ensino, que tem sob sua responsabilidade, em média,
umas 70 escolas públicas. Um pequeno exército
e o aluno era culpado e penalizado pelo fracasso. A culpa
sempre acabava sendo da vítima.
O ciclo desvela a incompetência da escola e do sistema
para ensinar que a reprovação mascarava. Ele
não permite mais a punição unilateral,
ele impede a farsa "professor finge que ensina e aluno
não aprende porque não é capaz".
A progressão continuada exige um bom trabalho coletivo
da escola para garantir o sucesso dos alunos. A cada final
de ano ou o aluno conseguiu aprender ou a escola ficou para
trás.
Na reprovação a marca do fracasso é do
aluno, na progressão continuada em ciclos a marca do
fracasso é da escola, do trabalho do professor, da
organização do sistema de ensino que tem de
ser avaliado, questionado, revisado e repensado nos seus pontos
frágeis.
É este o caminho que precisamos buscar e que devemos
ter coragem de trilhar. Ser capaz de enfrentar o velho e ultrapassado
mito de que a reprovação em si é boa
e lutar por uma escola que seja capaz de ensinar e não
simplesmente de excluir. Com as informações
que possuímos atualmente, continuar com o discurso
e a prática antiga de reprovar e culpar só o
aluno é, no mínimo, cômodo para não
dizer imoral.
Finalmente, a quem interessa atribuir ao sistema de ciclos
a idéia de caos e aumento da violência na escola?
Aos professores? Certamente não. Os educadores hoje
já sabem muito bem que o domínio do medo, o
fantasma da reprovação, pode facilitar o controle
da disciplina da classe de um ou outro professor cujas aulas
são desinteressantes e não motivadoras, mas
de nenhuma forma garante a aprendizagem. No ensino médio,
por exemplo, onde estudam os adolescentes e adultos nas faixas
etárias mais velhas, o sistema de ciclos e progressão
continuada não foi instituído. Entretanto, as
grandes quedas nas taxas de evasão possibilitou a freqüência
à escola dos jovens das camadas mais pobres da população,
que anteriormente estavam fora dela condenados à marginalidade,
droga, violência e criminalidade. A escola hoje tem
que enfrentar essa nova realidade. Ela hoje está inserida
num contexto de maior violência social. Além
de aceitar o desafio de ensinar a parcela de excluídos
que até recentemente nem sequer adentravam suas portas,
a escola hoje se depara com uma juventude cada vez mais livre,
autônoma e independente, que as próprias famílias
tem dificuldade de educar.
Nestes últimos 5 anos observamos em São Paulo
um fenômeno inédito em todo o país. Enquanto
a rede particular de ensino médio inexplicavelmente
parou de crescer e até diminuiu, ficando ao redor de
300 mil alunos, a rede pública estadual de ensino médio
cresceu cerca de 1 milhão de alunos, atingindo 2 milhões
e 300mil alunos no ano 2000. Neste período a taxa de
evasão na rede estadual caiu de 25% para 12%, tornando-se
a mais baixa do país. A rede estadual cresceu 3 redes
particulares de ensino médio em 5 anos. O que facilitou
essa explosão? Não foi unicamente a maior garantia
de acesso. Certamente foram decisivas algumas modificações
introduzidas como a matrícula por disciplina que possibilitou,
por exemplo, a um jovem reprovado em duas ou três disciplinas
não ter de refazer todas as matérias, avançando
nas que foi aprovado. Foi também a certeza de que não
está condenada por uma disciplina já em setembro
e terá mesmo chances de melhorar o seu desempenho estudando-a
na recuperação de férias em janeiro aumentando
suas chances de sucesso. Talvez alguns até considerem
que este jovem, mesmo trabalhando o dia todo e estudando à
noite, não seja tão bom quando comparado com
aqueles poucos que estudavam só no diurno naquela "boa"
escola "pública" do passado, de quase 100
anos atrás, que era paga por muitos e usufruída
só por uns poucos. Mas, certamente ele é extremamente
melhor do que aqueles milhões que na sua idade estavam,
ainda num passado recente, fora de qualquer escola e nem sequer
tinham chances de estudar e enfrentar a odiosa exclusão
social deste país.
Qualquer que sejam os medos e fantasmas não é
mais possível conviver com o modelo de escola e ensino
que herdamos do passado. O século XXI exige uma nova
escola - inclusiva, dinâmica e radicalmente diferente
- que além de transmitir o conhecimento tenha como
papel primordial possibilitar socialização e
o respeito mútuo, o desenvolvimento de valores éticos
e a solidariedade, principalmente do nosso jovem, exposto
a uma sociedade muito mais competitiva e individualista. Na
escola ele também aprenderá o saber socialmente
sistematizado, embora no futuro, graças à tecnologia
moderna, ele poderá até fazer a opção
de aprender de forma inteligente e ter acesso ao saber à
distância, fora da escola. Conseqüentemente, a
escola assim como o professor, principalmente o da escola
pública, terá de abandonar a posição
de arauto do fracasso. Como qualquer médico que é
aquele que cura todos os seus pacientes ou um bom advogado
que ganha todas as causas dos seus clientes, o professor terá
que rechaçar rapidamente a posição antropofágica
de que só é bom se reprovar ou seja se não
for capaz de fazer aquilo que dele se espera - ensinar. Uma
postura assim elitista e antidemocrática não
terá mais lugar no século XXI e se levada às
últimas conseqüências poderá, de
forma antropofágica ser, lamentavelmente, o próprio
fim da escola e da profissão. Essas são mudanças
de cultura, de postura, difíceis de serem ultrapassadas
porque tem um teor altamente ideológico e emocional
pois implica em perda de poder. Mas elas devem ocorrer com
urgência se quisermos preparar nossos jovens para o
novo século. Já estamos com uns 100 anos de
atraso. Resta ter coragem para deixar de usar a escola como
instrumento da elitização e exclusão
do saber. Resta não ter medo do desafio de ensinar
os excluídos que estão chegando na escola. Resta
acreditar com Rui Canário que "a idade de ouro
da educação ainda está por vir".
E isto vale principalmente para nós, no Brasil, que
só agora conseguimos colocar a totalidade de nossas
crianças e jovens nas escolas.