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Bom dia
Sexta-Feira , 29 de Março de 2024
>> Progressão Continuada
   
 
Quem tem medo da progressão continuada? Ou melhor, a quem interessa o sistema de reprovação e exclusão social?

Rose Neubauer

Algumas retrospectivas

No início do século XX ficou evidente que as escolas não poderiam continuar convivendo com relações pedagógicas tão autoritárias como as até então existentes, herdadas de modelos pedagógicas absolutamente ultrapassados. O que elas pressupunham? Que a criança não passava de um homúnculo com todas as habilidades e competências de um adulto, portanto, responsável pelo seu processo de aprendizagem. Para essas velhas teorias o centro da aprendizagem era o professor, o rei-sol, onisciente, e os alunos, passivos e mudos, deveriam gravitar ao seu redor. A disciplina em sala de aula deveria ser mantida a qualquer preço e os castigos físicos, a palmatória, a genuflexão sobre o milho, bem como as humilhações psicológicas, as famosas orelhas de burro colocadas no aluno que ia mal, imitavam as relações autoritárias e anti-democráticas existentes entre o poder e os seus súditos, assim como entre pais e filhos. Este clima de terror era coroado com a famosa reprovação em massa. O bom professor, pasmem, era aquele que reprovava muitos alunos e a escola, bem como o professor, eram eximidos de qualquer responsabilidade pelo fracasso escolar. Esse comportamento punitivo chegava mesmo às raias do exagero de reprovar um aluno por um simples décimo, inviabilizando muitas vezes toda a vida escolar futura de um jovem ou de uma criança. Mais do que se sentir rei-sol, certamente consolidava-se no professor um sentimento quase divino de poder dispor, a seu bel prazer, do destino de seus alunos, que se tornavam joguetes nas mãos do acaso.

Como uma concepção tão às avessas sobrevivera durante séculos? Ora, para todos aqueles que leram o livro "O Nome da Rosa" de Umberto Ecco ou assistiram ao filme do mesmo nome a explicação é clara. O saber era propriedade de uma pequena elite que queria tornar o acesso ao mesmo o mais difícil e inóspito possível. Afinal, como o livro bem mostra, saber é poder. Ora, a melhor forma de atingir tal objetivo, isto é, afastar a massa ignara do saber, era tornar a escola insuportável e inatingível, tratando o aluno da forma mais rígida possível, desestimulando-o da aventura do conhecimento reservada a uns poucos.

A partir do início do século XX, com o fim das monarquias européias, a adoção de modelos democráticos de governo nos países ocidentais, o impacto do desenvolvimento industrial e urbano que levou a um enorme crescimento da classe média e do proletariado, as classes dirigentes foram obrigadas a aceitar o compromisso de democratização da informação e do saber, proposto já desde a Revolução Francesa. Neste processo, a escola passa a desempenhar um papel fundamental, principalmente para os grupos mais pobres da população que só terão condições de acesso ao saber sistematizado, através dos serviços públicos ofertados pelo Estado no papel de compensador das desigualdades sociais.

No decorrer do século, a concepção de escola do passado começa a ruir, a ser demolida violentamente graças a diferentes contribuições científicas. Foram os avanços da Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem, da Neurologia, da Epistemologia Genética, da Pedagogia Moderna, do Sócio Construtivismo que mostraram, com enorme ênfase, que a aprendizagem das crianças tem características próprias, diferente da dos adultos; que o processo de aprendizagem é progressivo e cumulativo e nem sempre ocorre de forma linear, mas sim por saltos; e que o medo e a passividade não geram aprendizagem inteligente, ao contrário, são seus inimigos.

Assim, ao modelo de relação pedagógica autoritário, elitista e excludente até então existente irá contrapor-se um radicalmente novo, onde o ser que aprende - o aluno - passará a ser o centro do processo de aprendizagem que deverá estimular o aluno à participação, atividade, pesquisa e comportamento crítico.

Importantes educadores e estudiosos contribuíram para a sua construção. Vale lembrar aqui: Montessori, Decroli, Freinet, Dewey, Piaget, Wallon, Anísio Teixeira, Bourdieu e Passeron, Ana Maria Poppovic, Paulo Freire, Emília Ferreiro entre vários outros. Propõe eles uma escola democrática marcada por relações pedagógicas de inclusão, troca, respeito e estimulação. O aluno deve ser respeitado, suas características bio-psico-sociais consideradas no processo de planejamento, desenvolvimento e avaliação do ensino. Ao professor é atribuído o importante papel de mediador, facilitador do processo de aprendizagem, isto é, o de criar as condições necessárias e adequadas de exposição e apropriação do conhecimento pelos alunos. O papel do professor não será menos importante do que era no passado, mas implicará maior responsabilidade: zelar e garantir a aprendizagem do educando. Não basta ensinar. Condição necessária à função do professor será a de levar o aluno a aprender. Da mesma forma, a direção escolar e o sistema de supervisão do ensino passarão a ser solidariamente responsáveis com o professor pela garantia de aprendizagem das crianças e jovens.

Logo após a segunda guerra mundial vários países se dão conta da necessidade urgente de adotar um novo modelo de educação e mudar radicalmente a cultura da escola. Independente das dificuldades do pós-guerra, rompem com o modelo anterior e adotam o sistema de progressão continuada da aprendizagem para melhor assegurar a permanência com sucesso das crianças na escola e a formação de cidadãos críticos e criativos. Esta mudança tem algumas premissas básicas fundamentadas nas ciências modernas. São elas:
    - o ser humano, desde o início de sua vida apresenta ritmos e estilos significativamente diferentes para realizar toda e qualquer aprendizagem - andar, falar, brincar, comer com autonomia, ler, escrever, etc;
    - toda aprendizagem, inclusive a cognitiva, é um processo contínuo, que ocorre em progressão e não pode nem deve ser interrompida ou sofrer retrocessos, pois isto implica prejuízos enormes, tanto no que respeita à auto-imagem do aprendiz como na sua motivação para aprender;
    - toda criança normal, sem traumas ou problemas mentais, quando exposta a situações motivadoras de ensino é capaz de aprender e avançar em relação a seus padrões anteriores de desempenho;
    - aprendizagens cognitivas exigidas pela escola podem ocorrer com maior ou menor rapidez em função das características e estimulação dos ambientes sociais de onde as pessoas provêm;
    - o desempenho cognitivo e acadêmico de crianças e jovens de diferentes extratos sociais tende a atingir, nos anos iniciais de escolaridade, patamares médios bastante semelhantes, se respeitadas as dificuldades e obstáculos iniciais dos alunos e garantida a aprendizagem continuada com reforço e orientação para aqueles com maiores dificuldades.
De acordo com esta nova filosofia educacional torna-se, por exemplo, inadmissível à escola, ao final de um ano escolar, ou melhor de meros 10 meses, considerar um aluno como inepto total porque não aprendeu o que era "idealmente" esperado, num intervalo de tempo teoricamente "ideal". Ela exige respeito aos diferentes ritmos de aprendizagem, característica própria dos seres humanos.

Será impossível, pois, para a nova escola, aceitar a concepção do passado de que o aluno deve ser reprovado, se não dominou bem divisão, mesmo que tenha aprendido tudo em português, ciências, história e geografia. Para o novo modelo de escola, existe uma incompatibilidade total, uma conciliação impossível entre as idéias de respeito ao educando de Paulo Freire ou a de aprendizagem sócio-construída de Emilia Ferreiro com a prática escolar existente de que caso o aluno fosse reprovado, toda aprendizagem feita por ele durante aquele ano era praticamente desconsiderada, "apagada" de sua memória e depois refeita no ano seguinte, como se esse aluno fosse uma peça defeituosa numa linha de montagem industrial mecanizada. Durante todo o século passado, educadores ilustres nos legaram uma literatura educacional abundante mostrando que um aluno assim humilhado, desrespeitado e cognitivamente estuprado, passaria a comportar-se ou como um pequeno robô, amedrontado e passivo que a escola altera o crescimento intelectual de forma perversa, ou como um marginal revoltado que, saudavelmente, para proteger sua auto-estima agride e evade-se desta escola que personaliza o mais odioso tipo de autoritarismo.

No entanto, este modelo totalmente questionado já no início do século XX por valorizar o medo, o sofrimento, a humilhação, o fracasso, era muito apreciado e aplicado na chamada "boa" escola brasileira dos anos 50. Ele certamente é um dos maiores responsáveis pelo fato chocante, que parece não fazer parte da memória dos educadores e dos meios de comunicação de massa, de que o Brasil, nos anos 50, tinha somente 36% da população de 7 a 14 anos na escola. A tão propalada boa escola de antigamente era aquela em que a maioria ficava fora e a que ficava dentro fracassava em massa. Perdas de 60% ou mais (evasão e reprovação) eram consideradas absolutamente normais. E parece existir um pouco de cinismo quando atualmente nos admiramos com as altas taxas de analfabetismo da população brasileira com 40 anos ou mais. Precisamos no Brasil é ter coragem de enfrentar, sem saudosismos elitistas, o que há por fazer e me parece oportuno parafrasear aqui o educador português Rui Canário que recentemente esteve em São Paulo num congresso educacional e que numa entrevista dada ao jornal O Estado de São Paulo (em 29/09/00) afirmou: "as pessoas criticam a educação hoje achando que ela foi melhor um dia". Concordo com ele. Só é possível defender que aquele modelo de escola excludente do passado era bom por desinformação ou má fé.

Nas três últimas décadas do século XX a população brasileira "arrombou" as portas da escola. O crescimento das matrículas foi estrondoso. No entanto, por mais esforços que alguns educadores tenham feito, haverá muita dificuldade em mudar a cultura dessa escola elitista, autoritária, herdada do século XIX e serão usados todos os subterfúgios e práticas para afastar os alunos do acesso ao saber. A mais avassaladora delas será a reprovação, esta sim o instrumento por excelência a serviço da ignorância e da exclusão social. Em relação ao acesso ao saber pode mesmo ser comparada aos fornos crematórios do III Reich.

Nos idos dos anos 80, foram abundantes os estudos e pesquisas mostrando os efeitos perversos e pouco producentes da reprovação. Sergio Costa Ribeiro, físico e ilustre pesquisador, precocemente afastado de nós, produziu alguns dos trabalhos mais significativos na área, denunciando que o acesso finalmente conseguido pela população nas escolas públicas era enganoso pois a soma das taxas de evasão e reprovação continuavam tão altas quanto às dos anos 50. A diferença, dizia ele, é que agora, ao invés de milhares eram milhões de alunos, ano a ano, sistematicamente afastados das escolas. Os estudos de Ribeiro mostram com clareza que a evasão era o sub-produto das múltiplas repetências a que as crianças e jovens eram submetidos, ou seja, eles denunciavam que 50% da população escolar abandonava, evadia-se da escola depois de ter ficado de 6 a 8 anos "estacionada" na segunda ou terceira série do ensino fundamental e que de cada 100 crianças menos de 10 completavam o ensino fundamental em 8 anos. É possível acreditar que toda a população escolar deste país estivesse retardada mentalmente frente à escola? Ainda em 1995, mais da metade de toda população brasileira de 7 anos era reprovada na primeira série. Nenhum outro país miserável da América Latina tinha estatísticas tão perversas. Entretanto, convivíamos cínica e tranqüilamente com essa situação de perdas enormes de auto-estima nacional, de capital humano e financeiro que deprimiam cada vez mais a situação educacional do país.

Os anos 80 e 90 também foram férteis em pesquisas sobre o rendimento escolar dos alunos associados a um conjunto enorme de variáveis escolares e sócio-econômicas. Tive o privilégio de, como pesquisadora universitária e professora doutora na área de currículo e avaliação, participar de várias delas, juntamente com pesquisadoras ilustres como Ana Maria Poppovic, Bernardete Gatti, Guiomar Namo de Mello. As pesquisas com acompanhamento longitudinal de grupos de alunos das escolas públicas mostravam, em São Paulo e em outros Estados do Brasil, que a maioria deles, a cada ano de repetência, ia desempenhando cada vez pior, em decorrência das situações desestimuladoras a que eram submetidos e da diminuição significativa da sua auto-confiança como aprendiz. A maior parte das pesquisas na área apontava também que fatores como a duração do período escolar, várias mudanças ou falta dos professores num ano escolar, existência de materiais didáticos na sala de aula bem como presença de aulas de recuperação sistemáticas eram fatores muito mais determinantes no desempenho bem sucedido dos alunos.

Entretanto, raras vezes ocorreu às elites ou aos administradores que dirigiam o sistema educacional questionar esse modelo de escola de reprovação secular, pois afinal, se ela fosse tão boa já deveríamos ser um país de sábios. Somente na rede estadual paulista, no início da década de 90, cerca de 1.5 milhão de alunos, a cada ano, eram expulsos ou fracassavam na escola. Desde o final dos anos 80 os índices de evasão haviam atingido patamares absurdamente altos. E isto ocorria no mais rico e pujante Estado da América Latina, onde cerca de 90% dos professores já tinham formação universitária. Imagine a exclusão que ocorria no resto do país. E contraditoriamente, ficamos atualmente chocados com os índices de violência e miséria do país, sem parecer ou querer nos dar conta de quanto tem contribuído para estes índices o modelo de escola que exclui e violenta seus alunos, com a qual convivíamos com muito pouco questionamento.

Vale a pena, porém, lembrar algumas tentativas feitas no Brasil, já no final do século XX, para superar este quadro calamitoso. Em 1968, o emérito professor da USP, liberal e democrata, José Mario Pires Azanha, colaborando com Ulhoa Cintra, na Secretaria da Educação, implanta pela primeira vez no Brasil, no curso primário das escolas estaduais paulistas, os chamados nível I e II, ou seja, a passagem da primeira para a segunda série sem reprovações, assim como da terceira para a quarta séries. Estávamos no apagar das luzes de um período democrático e, por coincidência, o Gabinete cai por ser considerado subversivo. Em 1984, respirando os novos e raros ares de abertura democrática, o Governador Montoro implanta o ciclo básico nas escolas estaduais paulistas, no que é imitado por outros Estados, inclusive Minas Gerais. O objetivo? Dar à criança a possibilidade de completar sem retrocessos seu processo de alfabetização. Há resistência dos professores que acreditam perder a autoridade por não poder reprovar criancinhas de sete anos e o Governo não dá continuidade ao processo de ciclos, como propusera inicialmente. No início dos anos 90, já com o sistema democrático mais consolidado, a administração da educação municipal dirigida por Paulo Freire introduz, semelhante ao que pretendia Montoro, o sistema de 3 ciclos no ensino fundamental das escolas da capital paulista, o que também ocorre em várias outras capitais. A política de introdução dos ciclos surgiu e se fortaleceu nos poucos momentos democráticos que tem ocorrido neste país. Talvez isto justifique o seu atraso. Acredito que essas eminentes figuras que propuseram a aprendizagem em progressão continuada por ciclos não são passíveis de serem identificadas como demagogos ou malandros como pode a alguns parecer.

Os desafios do século XXI

Nos últimos anos do século XX, sob o impacto das enormes mudanças ocorridas na sociedade, do avanço da tecnologia e meios de comunicação de massa, da constatação cada vez mais óbvia de que a sociedade do futuro será a do conhecimento e que este determinará a riqueza das nações, é promulgada uma nova Lei de Diretrizes e Bases Nacionais (LDB) aprovada em 1996, sob a inspiração do educador Darcy Ribeiro. A nova LDB foi exaustivamente debatida pela sociedade e trouxe os primeiros ventos de modernização e real democratização para o sistema educacional brasileiro, recebendo a aprovação do Congresso Nacional, das entidades de classe e de todos os diferentes partidos políticos.

É, portanto, na LDB de 1996, que já estão inscritas e garantidas as diferentes formas de organização do ensino que ampliam as possibilidades de avanço e respeito à aprendizagem dos alunos. É nela que está claramente proposta a aprendizagem em progressão continuada na forma de ciclos. Lá estão apontadas também as formas de fazê-la com sucesso: ampliação da jornada escolar, a recuperação paralela e contínua dos alunos com dificuldades de aprendizagem, as horas de trabalho coletivo remunerado do professor para avaliação e capacitação; a proposta de esquemas de aceleração de aprendizagem para alunos multi-repetentes com grande defasagem idade-série; além do direito à reclassificação de estudos para todos aqueles que conseguiram aprender, independentemente da freqüência às escolas. É uma lei revolucionária, que buscava provocar enormes mudanças no sistema educacional brasileiro, na medida em que refletia o espírito de seu patrono: criar condições de acesso ao conhecimento para toda a população, o que até então a escola brasileira fora incapaz de fazer.
No caso específico de São Paulo, em 1996, quando a LDB estava em discussão, algumas de suas propostas já começaram a ser postas em prática. Foram garantidas na rede estadual paulista algumas condições básicas para a melhoria do ensino: a ampliação da jornada escolar de 720 para 1000 horas, para 90% dos alunos do diurno, e para 800 horas no período noturno; duas novas modalidades de recuperação paralela para todos os alunos com dificuldades de aprendizagem, ou seja tanto a semanal, de 3hs fora do horário regular de aulas, para corrigir deficiências prematuramente, como ao final do ano, no mês de janeiro, com 100 de duração, para os alunos faltosos ou com maiores dificuldades. Ao lado dessas medidas, foi instituído para todos os professores o pagamento de horas de trabalho na escola, porém fora da sala de aula, para capacitação e orientação sobre reforço escolar. Para que isto ocorresse, todas as escolas passaram a contar com um ou dois coordenadores pedagógicos, antiga reivindicação do magistério, de modo a acompanhar o trabalho dos professores juntamente com as Oficinas Pedagógicas, órgãos descentralizados de capacitação. Estas Oficinas contaram para os seus projetos com os resultados do sistema de avaliação do rendimento escolar (SARESP) feito por instituições externas à administração, que serviram de suporte e tomada de decisão para o investimento de recursos da ordem de 30 milhões de reais em cursos de capacitação de professores ofertados pelas universidades paulistas.

Essas medidas provocaram quedas drásticas nas taxas de evasão. Deixaram claro que os alunos e suas famílias percebiam quando valia a pena ficar na escola porque o aluno tinha realmente mais chances de se recuperar, ter sucesso e aprender. Foi somente no início de 1998, que o Conselho Estadual de Educação, em função das mudanças ocorridas, propôs a adoção para o sistema de ensino paulista público e privado, da aprendizagem em progressão continuada. A proposta só abrangia o ensino fundamental cujos oito anos deveriam ser organizados em dois ciclos, com reprovações ocorrendo ao final de qualquer ano escolar, no caso de faltas em excesso ou abandono da escola. Enfatizava o Conselho Estadual a importância de avaliações freqüentes e contínuas da aprendizagem dos alunos para embasar as aulas de recuperação paralela ou nas férias. Ao final dos dois ciclos, caso o aluno apresentasse problemas de aprendizagem, deveria ficar retido mais um ano na escola para um cuidadoso trabalho de recuperação. Tal proposta objetiva garantir às crianças paulistas a possibilidade de sucesso na escola e o respeito ao seu desenvolvimento intelectual e emocional.
No entanto, porque a organização da escola em ciclos irá assustar e ameaçar alguns setores da sociedade? A organização seriada da escola que tínhamos não levava a maioria dos alunos a aprender. As críticas à escola eram contundentes e as perdas fantásticas. A quem incomoda a sua mudança? Em nome de quem e quais subterfúgios ainda serão usados para atacar o sistema de ciclos?

É preciso concordar, em primeiro lugar, que causa estranheza o fato de que a idéia de fazer uma criança continuar aprendendo, progredindo de onde parou, que é o normal para toda e qualquer aprendizagem, só na escola é encarada como uma aberração. Porque será que isto ocorre? Porque demanda uma sistemática mais trabalhosa, detalhada, cuidadosa e criteriosa de avaliação?

Certamente. A Secretaria Estadual de Educação, no entanto, desde 1984, ou seja, desde a introdução do ciclo básico, já desenvolvera uma série de instrumentos, publicações, fichas detalhadas, programas de TV e vídeo - consubstanciados no famoso projeto Ipê - para auxiliar escolas e professores na avaliação, acompanhamento e recuperação dos alunos. Pode-se questionar se no passado existiam condições para esse tipo de avaliação. Porém, desde 1996 elas existem. São os horários de recuperação paralela semanal e ao final do ano. São as horas de trabalhado remunerados do professor na escola mas fora da sala de aula. São as horas ampliadas em 40% para a maioria dos alunos bem como a capacitação dos professores feita pela Universidade e escolhida pela própria Diretoria de Ensino e suas escolas.

Porque quando o aluno multirrepetente ficava vários anos estacionado numa mesma série ninguém se incomodava? Será porque era mais fácil camuflar o fato de que após 5 ou 6 anos de passagem pela escola ninguém havia, com seriedade, se responsabilizado pela aprendizagem desse aluno? Ora, por esse aluno haviam sido responsáveis pelo menos 5 professores, um diretor, um vice-diretor, um coordenador pedagógico, um supervisor da escola, três a quatro assistentes pedagógicos da Oficina Pedagógica local e um dirigente regional de ensino, que tem sob sua responsabilidade, em média, umas 70 escolas públicas. Um pequeno exército e o aluno era culpado e penalizado pelo fracasso. A culpa sempre acabava sendo da vítima.

O ciclo desvela a incompetência da escola e do sistema para ensinar que a reprovação mascarava. Ele não permite mais a punição unilateral, ele impede a farsa "professor finge que ensina e aluno não aprende porque não é capaz". A progressão continuada exige um bom trabalho coletivo da escola para garantir o sucesso dos alunos. A cada final de ano ou o aluno conseguiu aprender ou a escola ficou para trás.
Na reprovação a marca do fracasso é do aluno, na progressão continuada em ciclos a marca do fracasso é da escola, do trabalho do professor, da organização do sistema de ensino que tem de ser avaliado, questionado, revisado e repensado nos seus pontos frágeis.

É este o caminho que precisamos buscar e que devemos ter coragem de trilhar. Ser capaz de enfrentar o velho e ultrapassado mito de que a reprovação em si é boa e lutar por uma escola que seja capaz de ensinar e não simplesmente de excluir. Com as informações que possuímos atualmente, continuar com o discurso e a prática antiga de reprovar e culpar só o aluno é, no mínimo, cômodo para não dizer imoral.
Finalmente, a quem interessa atribuir ao sistema de ciclos a idéia de caos e aumento da violência na escola? Aos professores? Certamente não. Os educadores hoje já sabem muito bem que o domínio do medo, o fantasma da reprovação, pode facilitar o controle da disciplina da classe de um ou outro professor cujas aulas são desinteressantes e não motivadoras, mas de nenhuma forma garante a aprendizagem. No ensino médio, por exemplo, onde estudam os adolescentes e adultos nas faixas etárias mais velhas, o sistema de ciclos e progressão continuada não foi instituído. Entretanto, as grandes quedas nas taxas de evasão possibilitou a freqüência à escola dos jovens das camadas mais pobres da população, que anteriormente estavam fora dela condenados à marginalidade, droga, violência e criminalidade. A escola hoje tem que enfrentar essa nova realidade. Ela hoje está inserida num contexto de maior violência social. Além de aceitar o desafio de ensinar a parcela de excluídos que até recentemente nem sequer adentravam suas portas, a escola hoje se depara com uma juventude cada vez mais livre, autônoma e independente, que as próprias famílias tem dificuldade de educar.
Nestes últimos 5 anos observamos em São Paulo um fenômeno inédito em todo o país. Enquanto a rede particular de ensino médio inexplicavelmente parou de crescer e até diminuiu, ficando ao redor de 300 mil alunos, a rede pública estadual de ensino médio cresceu cerca de 1 milhão de alunos, atingindo 2 milhões e 300mil alunos no ano 2000. Neste período a taxa de evasão na rede estadual caiu de 25% para 12%, tornando-se a mais baixa do país. A rede estadual cresceu 3 redes particulares de ensino médio em 5 anos. O que facilitou essa explosão? Não foi unicamente a maior garantia de acesso. Certamente foram decisivas algumas modificações introduzidas como a matrícula por disciplina que possibilitou, por exemplo, a um jovem reprovado em duas ou três disciplinas não ter de refazer todas as matérias, avançando nas que foi aprovado. Foi também a certeza de que não está condenada por uma disciplina já em setembro e terá mesmo chances de melhorar o seu desempenho estudando-a na recuperação de férias em janeiro aumentando suas chances de sucesso. Talvez alguns até considerem que este jovem, mesmo trabalhando o dia todo e estudando à noite, não seja tão bom quando comparado com aqueles poucos que estudavam só no diurno naquela "boa" escola "pública" do passado, de quase 100 anos atrás, que era paga por muitos e usufruída só por uns poucos. Mas, certamente ele é extremamente melhor do que aqueles milhões que na sua idade estavam, ainda num passado recente, fora de qualquer escola e nem sequer tinham chances de estudar e enfrentar a odiosa exclusão social deste país.

Qualquer que sejam os medos e fantasmas não é mais possível conviver com o modelo de escola e ensino que herdamos do passado. O século XXI exige uma nova escola - inclusiva, dinâmica e radicalmente diferente - que além de transmitir o conhecimento tenha como papel primordial possibilitar socialização e o respeito mútuo, o desenvolvimento de valores éticos e a solidariedade, principalmente do nosso jovem, exposto a uma sociedade muito mais competitiva e individualista. Na escola ele também aprenderá o saber socialmente sistematizado, embora no futuro, graças à tecnologia moderna, ele poderá até fazer a opção de aprender de forma inteligente e ter acesso ao saber à distância, fora da escola. Conseqüentemente, a escola assim como o professor, principalmente o da escola pública, terá de abandonar a posição de arauto do fracasso. Como qualquer médico que é aquele que cura todos os seus pacientes ou um bom advogado que ganha todas as causas dos seus clientes, o professor terá que rechaçar rapidamente a posição antropofágica de que só é bom se reprovar ou seja se não for capaz de fazer aquilo que dele se espera - ensinar. Uma postura assim elitista e antidemocrática não terá mais lugar no século XXI e se levada às últimas conseqüências poderá, de forma antropofágica ser, lamentavelmente, o próprio fim da escola e da profissão. Essas são mudanças de cultura, de postura, difíceis de serem ultrapassadas porque tem um teor altamente ideológico e emocional pois implica em perda de poder. Mas elas devem ocorrer com urgência se quisermos preparar nossos jovens para o novo século. Já estamos com uns 100 anos de atraso. Resta ter coragem para deixar de usar a escola como instrumento da elitização e exclusão do saber. Resta não ter medo do desafio de ensinar os excluídos que estão chegando na escola. Resta acreditar com Rui Canário que "a idade de ouro da educação ainda está por vir". E isto vale principalmente para nós, no Brasil, que só agora conseguimos colocar a totalidade de nossas crianças e jovens nas escolas.

Publicação: Artigo da SEE, São Paulo, 2001.

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